Cantos Gregorianos - Salmos

quarta-feira, 30 de abril de 2014

SANTIDADE

Conta-se que um homem, desejando alcançar a santidade, retirou-se do convívio dos demais homens e recolheu-se a uma gruta. Seu único alimento consistia em raízes, avelãs e um pouco de pão que, eventualmente, alguns camponeses lhe davam. Passava o dia inteiro orando e lendo as sagradas escrituras. De hora em hora, durante a noite, levantava-se para orar. Passados alguns anos, rogou a Deus: Senhor, mostra-me alguém que tenha conseguido maior santificação do que eu. Assim, poderei melhorar minha própria vida. Atendendo sua prece, o Senhor lhe enviou um Mensageiro Espiritual que lhe disse: Amanhã vai à cidade e no mercado encontrarás um palhaço. Ele é o homem que procuras/ O eremita ficou um tanto desapontado, pois acreditava que não houvesse ninguém melhor que ele. Mas fez o que lhe foi dito. Na praça pública viu um palhaço que tocava música, entoava uma canção, em seguida fazia uns truques de mágica. Depois, passava o chapéu para recolher as moedas. Terminada a apresentação, o eremita, com desgosto, o puxou a um canto da praça e lhe perguntou o que ele fizera de bom, que orações e penitências ele teria feito para ser amado por Deus. O sorriso desapareceu da boca do palhaço e ele disse: Homem, não faças troça de mim. Não me recordo de ter feito alguma caridade. Tudo que sei é tocar minha flauta, rir e cantar por alguns trocados. Mas o que se considerava santo, insistiu. Contudo, o menestrel não se lembrava de nada de bom que tivesse feito. Finalmente, o eremita perguntou-lhe se ele sempre fora vagabundo. Então, o palhaço disse: De verdade, não. Há alguns anos, ganhei uma grande quantia como herança, depois da morte de meu pai. Tomei dos valores e andando pela estrada vi uma mulher, cansada e chorando. Parecia ter sido perseguida por ferozes inimigos. Porque me aproximasse e a indagasse, ela falou que seus filhos e seu marido haviam sido levados como escravos, para pagamento de uma dívida. Ela também logo seria levada como escrava, como pagamento final. É claro que eu lhe dei todo o dinheiro para que ela comprasse a sua e a liberdade da sua família. Isto explica minha pobreza. Não houve mérito nenhum. Qualquer um faria o mesmo. É um ato tão banal que até mesmo me esquecera dele. O eremita entendeu, então, porque Deus considerava aquele homem melhor que ele. Aprendeu que ele fora muito egoísta, afastando-se dos homens, porque há muitas formas de servir a Deus. Alguns O servem nas estradas, ajudando estranhos em necessidade ou desespero. Outros vivem nos lares trabalhando, educando seus filhos, mantendo-se alegres e gentis. Outros mais suportam com paciência a dor. Enfim, infinitas são as maneiras de servir à Divindade e alcançar a perfeição, tantas e diversas que somente o Pai Celestial as vê e conhece.

* * *


O servidor do Cristo deve deixar que brilhe a sua luz, renunciando a si mesmo e dedicando-se ao semelhante. Quem serve verdadeiramente, não busca recompensa, nem agradecimentos. Não se preocupa com a ingratidão. Serve pela satisfação e a honra de servir.

terça-feira, 29 de abril de 2014

Espiritualidade: O Sentido Da Vida.

A espiritualidade, que de fato dá conta de si mesma, leva à identificação e à edificação do sentido pleno da vida que eu próprio sou. O sentido da vida é a busca essencial de todo homem; é uma busca "necessária"; uma busca que todo ser humano faz, queira ou não, tenha consciência dela ou não, seja nihilista ou não. É esta busca, essencialmente pessoal mas com efeitos "sociais", o motor que faz acontecer a história da humanidade. Dizer busca do "sentido pleno da vida" é o mesmo que dizer busca da realização, da felicidade, da paz. É essa busca que nos faz diferentes dos outros seres: as coisas, as plantas e os animais. A esse complexo fenômeno próprio do homem, de buscar e ter que buscar o sentido da vida, a tradição cultural ocidental chamou "espírito" e também "alma". Modernamente dizemos existência, autonomia, liberdade, história. O caminho para identificar e ir em profundidade no sentido da vida é a reflexão. Refletir é bem diferente do saber informativo, próprio da ciência. Refletir provém da palavra latina re-flectir: "ré" indica o movimento de duplicação; "flectir" é dobrar, curvar, fazer voltar sobre si. Portanto, a reflexão é o dobrar-se sobre si, buscando compreender. Refletir não é ensimesmar-se, centralizar-se sobre o próprio umbigo; é antes pensar, mas um pensar "re-flectido".  O modo de ser da reflexão é um caminhar lento, tateante, no lusco-fusco de um saber que não permite simplificar a realidade em preto e branco, sim e não, certo e errado. É um modo de ser que sabe esperar, se for necessário, toda uma vida, na tenacidade da busca, para que o sentido de acontecimentos e do viver se manifeste. A reflexão é uma jogada existencial que determina o vigor do meu viver total.     Tudo o que se refere à profundidade humana, ao espírito só pode ser compreendido pela reflexão. Esta maneira de ser da reflexão é atitude diametralmente oposta à tendência da nossa modernidade com seus valores de projeção e dominação, pois buscar o sentido é bem diferente de buscar o "porquê", as causas. Por isso o modo de ser da reflexão dá a impressão de ser alienado, imprático, inútil, a-social, particularizado, privativo. No entanto, se formos tocados por seu sopro, aos poucos seremos por ela transformados no nosso registro central, no sentido que anima nosso viver, e seremos seres novos. Para caracterizar melhor o modo de ser da reflexão, dizemos que ela tem a estrutura de história, entendendo história como "história de uma alma", isto é, como um caminho no qual cresce em nós uma compreensão bem experimentada da vida.  Esse caminho se dá nas vicissitudes de nosso itinerário pessoal: nos nossos encontros e desencontros, nos sofrimentos, dores e alegrias, fracassos e vitórias. É na medida em que caminhamos que vamos compreendendo nós mesmos, os outros, o universo e, principalmente, o mistério de Deus e os seus caminhos, que pulsam na dimensão mais profunda do nosso caminhar.  À medida que caminhamos, vamos descobrindo o sentido da vida, isto é, o rumo, o destino mais radical do nosso viver e nele vamos descobrindo as respostas as nossas indagações e inquietudes. É a história de nossa "alma", isto é, daquilo que "almeja" nosso viver na sua total singularidade. A experiência que surge deste caminhar é bem diferente da "vivência". Quando dizemos, por exemplo, que um homem tem grande vivência, não sabemos se ele é experimentado na vida; só sabemos que tem sensibilidade e é facilmente envolvido em grandes emoções.

Quando, porém, dizemos de alguém que é "homem de grande experiência", dizemos que acumulou grande quantidade de energia de ser, de sabedoria da vida, de evidências vitais. Na profundidade mais radical da busca de sentido, na tenacidade de uma busca conduzida com afinco vem à tona e se dá o encontro com a realidade ulti-míssima, Deus, o Mistério no qual nos movemos, existimos e somos. Ele é a verdade, isto é, como a palavra grega "alétheia" significa, ele é a manifestação de si, a partir de si, no abismo do mistério de seu amor, para aqueles que o buscam bem. Deus é paraíso porque coroa e plenifica nosso itinerário de busca de sentido.

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Como bambús no Getsêmani...


Pe. Léo, scj
Chega dessa espiritualidade de lixo, pois enquanto vivermos essa espiritualidade de lixo e da superficialidade...

Jesus diz para nós categoricamente: “Eu vim para que todos tenham vida”, eu acho que hoje Jesus mudaria um pouquinho a Palavra, ele talvez dissesse a mim e a você: “Eu vim para que você tenha vida, e tenham a vida em abundância, e tenham uma vida que valha a pena e não essa vidinha que você anda vivendo por aí. Mas o próprio Jesus que veio para nos dar essa vida, ele nos ensina que essa vida é conquista. E que nessa conquista a cura interior precisa ser uma alavanca. E de modo especial e como nos diz no Salmo 36, que naqueles momentos de tribulação e de dificuldade, de sofrimento e de dor. O que fazer nessas horas? Se a cura interior não pode ser entendida como aquela oração fraca, como essas orações de correntes de achar papel.

Retirou-se Jesus com eles para um lugar chamado Getsêmani e disse-lhes: “Assentai-vos aqui, enquanto eu vou ali orar.” E, tomando consigo Pedro e os filhos de Zebedeu, começou a entristecer-se e angustiar-se. Disse-lhes, então: “Minha alma está triste até a morte. Ficai aqui e vigiai comigo.” Adiantou-se um pouco e, prostrando-se com a face por terra assim rezou: “Meu Pai, se é possível, afasta de mim este cálice! Todavia não se faça o que eu quero, mas sim o que tu queres.” Foi ter então com os discípulos e os encontrou dormindo. E disse a Pedro: “Então não pudestes vigiar uma hora comigo? Vigiai e orai para que não entreis em tentação. O Espírito está pronto, mas a carne é fraca.”
Afastou-se pela segunda vez e orou, dizendo: “Meu Pai, se não é possível que este cálice passe sem que eu o beba, faça-se a tua vontade!” Voltou ainda e os encontrou novamente dormindo, porque seus olhos estavam pesados.
Deixou-os e foi orar pela terceira vez, dizendo as mesmas palavras. Voltou então para os seus discípulos e disse-lhes: “Dormi agora e repousai! Chegou a hora: o filho do homem vai ser entregue nas mãos dos pecadores... Levantai-vos, vamos! Aquele que me trai está perto daqui.” (Mt26, 36-46).

Essa oração de cura interior que Jesus fez, pois essa é a grande oração de cura interior de Jesus. Não era cura espiritual, pois Jesus não pecou. Também não era cura física, pois ele não tinha nenhuma enfermidade física. Jesus fez uma profunda oração de cura interior para nos ensinar a fazer também essa oração de cura interior. Sabem por que muitos de nós ainda não fomos curados? Porque nunca fizemos uma oração de cura interior seguindo o modelo de Jesus.
É Jesus que diz para mim e para você: “Eu vim para que você tenha vida, e a tenha em abundância”. É Jesus que em João 14-6 diz: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”. Enquanto nós fizemos oração de cura interior seguindo os gurus da Nova Era, nós podemos até sentir um alívio interior. Um desabafo espiritual, mas não é cura interior. Cura interior é uma oração feita a partir de uma suprema angústia. A segunda coisa, pela qual muitos de nós ainda não fomos curados é que nós ainda não nos convencemos de que estamos em uma batalha. Quando tem um jogo importante do Brasil em outro país que tem fuso horário, muitos de nós pusemos o relógio a despertar e levantamos às três horas da manhã para ver o jogo pela televisão. E ali na frente da televisão, podia ser frio ou não, ficamos firmes, torcendo para que Ronaldinho fizesse gol. Embora a grande responsável pelo sucesso do modelo do cabelo do Ronaldinho fosse minha mãe. Quando éramos pequenos, mamãe mandava cortar nosso cabelo no mesmo modelo.

Quantas vezes você levantou às três horas da manhã para rezar um terço, para vencer a desgraça que está se abatendo sobre a sua família? Não é errado, nem pecado levantar às três horas da manhã para assistir um jogo. Isso é bom, e ficamos muito felizes com a vitória de nosso time. Mas para libertar um filho da droga é muito difícil um pai ou uma mãe levantar três horas da manhã para rezar um terço. Na Comunidade Bethânia tem filhos que estão lá há mais de seis meses sem nunca receber ao menos uma carta da família.

Na hora da adoração ao Santíssimo tem pessoas, e, a maioria jovens, que não conseguem ficar nem cinco minutos ajoelhados diante do Senhor. Depois querem pôr a mão no ostensório como se fosse alguma coisa mágica. Nós brincamos com as coisas sérias, por isso falta alegria. A alegria que tem que brotar em nosso coração é fruto de sangue. Por isso há uma grande preocupação quando se ensina oração de cura interior como se fosse uma coisa mágica, um carinho que eu fico passando a mão na cabeça da pessoa e ela se comove. A vida é dura e principalmente se a pessoa for mole. Se Jesus, que é o filho de Deus, veio para nos dar a vida, e que tem palavras de vida, nos dá o pão da vida, é o único que nos pode levar para a vida eterna. E se Jesus sentiu tristeza profunda. Uma tristeza tão grande que se transformou em uma angústia suprema e que chegou a suar sangue. Acredito que nunca nenhum de nós suou sangue. E só quem falou que Jesus suou sangue foi Lucas, porque Lucas era médico e sabia muito bem que quando uma pessoa chega a suar sangue é porque essa angústia, essa tristeza já passou para o seu corpo. A tristeza espiritual, a tristeza interior se traduz em uma tristeza física. O corpo somatiza essa tristeza. Jesus se retirou e nós não nos retiramos. Nós não nos afastamos. Nós vivemos num barulho danado, numa agitação, numa correria. Às vezes rezamos quinze minutos por dia e achamos que Deus nos deve obrigação. Chega dessa espiritualidade de lixo, pois enquanto vivermos essa espiritualidade de lixo e da superficialidade, nós não chegaremos a mergulhar na cura que o Senhor quer fazer. A cura interior não é opcional, Jesus veio para curar interiormente, porque sem a cura interior não tem salvação.

O ministério da cura interior em Jesus é um ministério de salvação, pois ele é o Salvador. Muitas vezes nós queremos um Cristo curandeiro que não me compromete. Um Cristo que me ensine uma oração mole.

Jesus retirou-se com os doze. Grupo. E é a coisa que o encardido mais está tentando destruir dentro da igreja são os grupos de orações. E que tristeza, pois ele está conseguindo. Tem grupos hoje, que parece uma assembléia, onde tudo está organizado. Desde a recepção até os avisos. Fala-se muito e reza-se pouco. O que mais precisamos em um grupo de oração é um pôr a mão no outro para rezar e interceder pelas pessoas. Precisamos deixar de viver na lorota. Tem gente que pertence a tantos cargos e secretarias que não tem tempo para fazer nenhuma oração.

È preciso que eu tenha um grupo. Jesus tinha um grupo de setenta e dois discípulos com os quais ele rezava. Mas ele tinha o grupo dos doze apóstolos para orações mais íntimas. Foi para eles que Jesus ensinou o Pai Nosso, foi com eles que Jesus partiu o pão e instituiu a Eucaristia. Foi com eles que Jesus instituiu o sacramento da reconciliação. Mas ainda dentro daquele grupo que rezava com Jesus, ele tinha o seu grupo de cura interior. E esse grupo era formado por Pedro, Tiago e João. Sabe o que mais me impressiona? É que esses eram os três piores.

Em matéria de relacionamentos, eles são os únicos três que a bíblia conta que tinham defeitos de relacionamentos. E para completar o quadro, Jesus diz que o quarto está chegando. E qual era essa quarta pessoa? Era Judas. Jesus tinha o seu grupo, dentro desse grupo tinha os três que eram os seus verdadeiros amigos. Quem diz que tem muitos amigos não tem nenhum. Amigos de verdade você tem que ter poucos, mas ter amigos diante dos quais eu possa rasgar meu coração. As piores máscaras que existem são as máscaras espirituais que criam corações mascarados. E corações mascarados, em pouco tempo tornam-se corações empedernidos, corações feridos e machucados. E a ferida lá de dentro não sai. Nós precisamos de pessoas, diante das quais nós podemos rasgar nosso coração. Isso eu preciso na família, na comunidade e eu preciso na igreja também.

Não acontece cura interior sem intimidade profunda. Amigo é aquele que eu posso mostrar a minha fraqueza. Cronologicamente falando, essa experiência de oração de cura interior de Jesus aconteceu na semana da sua morte. Muito provavelmente na quarta ou na quinta-feira santa. Como é que esse homem que assumia a missão de ser salvador do mundo saía convidando os discípulos a pregar o seu nome como o Senhor e Salvador. Inclusive entre os discípulos, aquele que ia assumir a missão de ser o seu sucessor. Jesus não tem máscara e mostra seu coração diante daquele que ia ser o primeiro Papa. É por isso que depois na cruz Jesus vai poder fazer oração de cura interior dizendo: “Pai, perdoa-lhes, pois não sabem o que fazem”. É também por isso que depois de ressuscitado vem fazer oração de cura interior no coração de Pedro. Jesus está nos mostrando que enquanto não entrarmos nesse processo de prostração... Quem não se prostra diante de Jesus, se prostrará diante do encardido, e é esse o desejo dele. Existem muitas pessoas prostradas na vida. Prostrar é deprimir, desanimar... Sabem por que ficamos prostrados? Porque não nos prostramos diante de Jesus.

Se abrirmos a bíblia, vamos perceber desde Gêneses, muitas situações de pessoas limítrofes. E qual é a atitude dessas pessoas? Prostrar-se em oração diante de Deus. Mas não uma oração fraquinha escondida lá no quarto. Quem quer experimentar a graça da cura interior não pode se esconder tem que tirar as máscaras.

Jesus embora não tivesse máscaras, teve que tira-las diante de Pedro, Tiago e de João. Talvez tenha sido pedagógico que Jesus tenha escolhido Pedro, Tiago e João para nos mostrar diante de quem ele se abriu.

Pedro, o único que o negou três vezes. Tiago e João receberam de Jesus o apelido de Boanerges. Que quer dizer: Filhos do trovão. Muitas vezes ficamos tristes porque alguém falou mal de nós. Jesus chamou os dois de filhos do trovão. Trovão é feio e assusta, seria uma ofensa grande. E para Pedro Jesus deu um apelido medonho. “Afasta-te de mim Satanás” Mt16. Mas foi diante dessa trinca medonha que Jesus três vezes se prostrou em oração. Parece até que as três vezes foram de propósito: sendo uma para Pedro, uma para Tiago e outra para João. Talvez por isso que Paulo escreve em Gálatas que as colunas da igreja são: Pedro, Tiago e João. Jesus se abriu com eles mostrando a sua angústia, e pior, parece que os três não se importaram com Jesus, pois dormiram as três vezes.

A primeira vez que Jesus se prostrou ele ficou uma hora. Tente ficar uma hora prostrado com a cara enfiada no chão. Jesus se prostra e abri o coração para o Pai. A dupla dimensão da cura interior. A cura interior se dá através das pessoas, pois enquanto eu ficar escondido com as minhas máscaras Deus não me cura. Não tem jeito de curar. Jesus praticou a cura interior abrindo-se diante dos três piores apóstolos nessa área. Chorou diante deles, desmoronou numa angústia suprema e rezou ao Pai. Abriu o coração, arrebentou as máscaras do coração dizendo: “Meu Pai, se possível afasta de mim esse cálice”. Jesus não foi para a cruz dando risadas não! Jesus veio para salvar o mundo e coerentemente com a sua vocação e a sua missão por amar muito o Pai e o mundo. “Tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (Jo15, 1). Em conseqüência da coerência desse amor é que Jesus vai até o final e passa pela cruz. A chegada da cruz teve Getsêmani. Esse Jesus que quer dar a vida a mim e a você quer nos ensinar algo muito importante.
Se você é capaz de levantar às três horas da manhã para assistir um jogo da seleção que não muda nada na sua vida. Se você conseguiu fazer isso, é Deus dizendo a você que você vai conseguir até enfrentar uma seleção muito mais difícil. A seleção dos traficantes, a seleção dos “prostituidores”, a seleção dos “desempregadores”, a seleção dos “corruptores”. Tem um monte de seleção que estão sendo treinadas para jogar contra você. Guga foi o melhor tenista brasileiro, mas quando estava machucado não conseguia ganhar.

Você nasceu para ser o melhor do mundo. Não no sentido de ser melhor que o outro. Não temos que nos comparar com ninguém, mas nascemos para ser o melhor para o mundo.

Você tem que ser o melhor marido para a sua esposa. O melhor pai para os seus filhos. O melhor padre para a sua comunidade. O cristão tem que ser melhor para... Mas ele está parando de ser melhor, está com o coração ferido e machucado e por isso perde pra qualquer um que aparece na frente. A derrota está dentro de você, não está fora. Nós estamos carregando a derrota. Jesus está nos dizendo duas coisas fundamentais: Em primeiro lugar: Você tem verdadeiros amigos? Não estou falando de colegas nem de conhecidos que me aplaudem, e que puxam o saco. Isso é fácil. Quem diz ter muitos amigos, aqueles amigos de festa, só das coisas superficiais, só para a euforia... Quantos filhos chegam para mim e falam: “Ah pai, quando eu tinha dinheiro, carro, eu tinha sempre muitos amigos. Mas depois que eu me contaminei, quando eu fiquei sem nada, na hora que eu fui preso não apareceu nenhuma pessoa”.

Devemos louvar a Deus as situações difíceis em nossa vida, pois é nessa hora que sabemos quem somos para os outros. Por isso nunca peça para Deus tirar os problemas de sua vida. Peça sim a graça de superar os problemas.

Deus me deu uma imagem e que eu deixei evoluir. A imagem de um menino que depois de uma tempestade violenta, pela manhã, ele saiu na varanda da fazenda e gritou com o seu avô:
Vovô! Corre aqui, venha ver que interessante! Como é que o senhor me explica que essa figueira tão grande e forte, uma árvore dessa que precisava quatro homens para abraçar o seu tronco de tão forte que ela era, como é que essa figueira tombou vovô? O vento derrubou a figueira, mas como é que aquele pezinho de bambu tão fininho não caiu?
O avô colocou o netinho no cangote, levou-o até a figueira e mostrou a figueira.
_ Nossa vovô ela está oca!
_ É, com o tempo a figueira foi ficando oca.
_ Como? Não parecia!
_ É por causa da casca, meu filho! Tinha uma casca muito grande e escondia o oco. Você olhava a figueira e só via a aparência. Achou que era muito importante veio o vento e bummm...
_ É vovô, mas o bambu também é oco!
O avô levou o menino até o bambu e disse:
_ A primeira diferença: O bambu sabe que é oco desde pequeno.
Então a primeira coisa que o bambu nos ensina é que desde pequenos somos ocos. O que significa isso? Vazio para poder encher-se de Deus.

O bambu, sabendo que é oco e que é fraco, toma alguns cuidados. A segunda coisa que o bambu nos ensina é que nossa vocação é o céu. Todo bambu só cresce para o alto, ele sobe, você também. Ou você cresce para o alto ou a tempestade vai lhe derrubar. Eu preciso ter uma meta. E é no alto que está a nossa meta. Somos cidadãos do céu. Mas tem mais uma coisa: se ele quer crescer muito, precisa ter raízes profundas e por isso ele vai se alastrando. O tanto que o bambu cresce para cima ele vai também se alastrando na terra, fincando raízes profundas e vai brotando, enchendo em seu redor.
Em Bethânia eu tenho um bambu chinês que levou alguns anos começar a crescer. Ele leva muito tempo só criando raízes. E é nisso que o bambu nos ensina, que se eu quero chegar lá no alto, eu preciso ter raízes sadias e fortes. O que significam raízes? Raiz é aquilo que temos escondido.

A árvore, com o tempo vai envelhecendo, e as raízes começam a aparecer. Conosco também é assim. As raízes são os vícios que vamos escondendo. Eu tenho que deixar a graça de Deus penetrar em cada uma das minhas raízes. A raiz é minha fé solidificada e alimentada pela leitura contínua e constante da Palavra de Deus. A raiz é alimentada por um grupo que me sustenta e me fortalece.

O bambu ainda nos ensina uma quarta coisa: Se eu quero crescer para cima eu não posso criar galhos e por isso o bambu não cria galhos como a figueira. Criar galhos significa dispersar nossos dons e nossos talentos em coisas que não devem. Quantas pessoas se enroscam na vida porque estão sempre amarradas em alguém ou em alguma coisa. Quanto mais galhos eu tiver mais dolorosa será a poda. Os galhos são as coisas que vamos acumulando e se apegando. A maioria dessas coisas não precisaríamos ter, são apegos desnecessários. Quanto menos coisas a gente tiver, mais livre será.

Um sujeito foi procurar um mestre Guru para pedir ajuda. Chegando lá e casa dele era uma tenda. O mestre convidou-o a entrar, ele entrou, ficou olhando admirado, tinha um colchão no chão, duas cadeiras, duas pedras, em cima uma panela, mais nada. Ele ficou impressionado com aquilo, perguntou para o mestre onde estavam as suas coisas. O mestre deu uma risadinha e fez a mesma pergunta.
_ Ah, mas eu estou aqui de passagem!
_ Eu também.
Nós estamos aqui de passagem e se queremos crescer para o alto é preciso cortar os galhos. Crescer para o alto cortando as galhadas significa investir a minha vida, e isso vale para tudo. Quantas famílias estão cheias de dívidas e cheias de problemas porque não se unem. O bambu é oco desde pequeno, querendo crescer para o alto ele cria raízes profundas, e não cria galhos.

Se olharmos bem de perto para um bambu, vamos perceber uma quinta coisa que ele nos ensina, que são os nós. O bambu cria nó, e enquanto ele é mais frágil os nós são mais pertos um do outro. A partir do momento que ele vai ganhando resistência os nós vão se distanciando e ficando mais fortes. Os nós são os obstáculos e cada problema que eu supero na vida vai me tornando uma pessoa mais forte.

Se o bambu não tivesse nós, ele seria lindo! Parecia um cano de PVC, mas na primeira ventania ele racharia de cima até embaixo. É o nó que dá resistência ao bambu, é o nó que faz o bambu ser forte e firme. Cada nó significa um problema resolvido, um obstáculo vencido. Cada nó significa uma pessoa que eu perdoei. E cada vez que eu perdôo e cada jejum que eu consigo fazer significa um nozinho se formando e esse nozinho vai amarrando e dando consistência. Eu preciso aprender com os nós que significam dificuldades superadas. Problemas todos nós temos e precisamos aprender a assimilá-los e não fugir deles. O mundo de hoje nos ensina a fugir dos problemas, mas Jesus nos ensinou com sua pedagogia. Muitas vezes precisaríamos nos prostrar e chorar nossas mágoas diante do Senhor.

No livro de Samuel 1, temos uma oração linda de cura interior. Ana rezando, e quando o sacerdote pergunta se ela está bêbada, pelo jeito que ela rezava. Ela respondeu que não estava bêbada, pois não havia bebido nenhum tipo de bebidas, mas estava derramando a sua alma na presença do Senhor. E você derrama sua alma na presença de quem?
A nossa caminhada é feita de etapas e cada problema deve ser resolvido um de cada vez. Se você tiver trinta pratos para lavar, você vai ter que lavar um da cada vez. E cada etapa vencida precisa ser celebrada. A cura interior é um processo diário.

Ainda o bambu nos ensina uma sexta coisa que o avô falou para o menino.
_ Olhe aqui meu filho. Esse bambu está só?
A primeira coisa que o bambu faz quando começa a crescer é deixar o vento jogar sementes ao seu redor. Bambu cresce só em touça. E essa touça é muito grudada, porque nenhum deles tem galhos e por isso vão se grudando um no outro. Por isso quando olhamos de longe para uma touça de bambu, parece maior que uma figueira e essa touça é muito grudada.
Primeiro: Porque nenhum deles tem galhos.
Segundo: Todos eles têm raízes profundas.
Terceiro: Porque todos eles têm uma meta que é crescer para cima.
Quarto: Todos eles sabem que são ocos.
Quinto: Todos vão se grudando um no outro, porque aprenderam a fazer isso consigo mesmo. Quem aprendeu a superar os nós, sabe também se apoiar um no outro. O bambu se apóia em si mesmo pelos nós. Sabemos que problema superado é vitória garantida. Quem não consegue cortar os galhos, não consegue caminhar. Por quê as pessoas não conseguem viver em comunidade? Os galhos são aqueles melindres bobos que temos por qualquer coisa. É aquele emprego que você perdeu e fica o resto da vida se lamentando. Só não vive em touça quem tem galhos demais, porque o galho de um cutuca o outro.

A primeira coisa que o bambu me ensina é que nasci oco, e nasci oco para ser cheio do Espírito Santo.
O bambu nos ensina a ter uma meta, crescer para o alto, nossa meta é o céu. E para crescer para o alto é preciso ter raízes profundas, curadas e saradas. E para isso eu preciso cortar os galhos. E quais os galhos que eu preciso cortar? Os vícios, as vaidades, o exagero. E com isso transformar os nós em problemas superados e que vão criando a minha resistência. É aprender a viver em touça. E por sétimo o bambu nos ensina que em Deus tudo é perfeito.
O menino desceu do cangote do avô, o avô pegou um bambu, entortou até o chão, soltou e o bambu voltou ao seu lugar. Essa é uma grande lição do bambu. É ter a humildade de se curvar na hora da tempestade.

Todos nós precisamos nos curvar, e para nos ensinar isso o primeiro a se curvar foi Jesus no Getsêmani.
Jesus pediu ao Pai: “Se é possível afasta de mim esse cálice. Mas se não é possível que esse cálice passe sem que eu o beba, faça-se a tua vontade”. Na oração de Jesus ele saiu do desejo, do querer e foi para a vontade, e a vontade deve ser treinada, a vontade é na garra e na luta. Oração de cura interior é treinar a minha vontade para Deus. É ter a coragem de se prostrar e dizer: “Meu Deus! Eu preciso da tua graça. Meu Deus! Dai-me a graça de aprender com o bambu. De crescer em touça, de perder os galhos, as desnecessárias. Dê-me a graça Senhor de ser cada vez mais oco para poder encher-me do teu amor." 


A ALEGRIA DE SER CARTUXO

 


INTRODUÇÃO


Há alguns anos o filme “O Grande Silêncio” causou grande impacto no público. Revelou um pouco sobre a vida dos cartuxos, mas só um pouco, porque a mudez do filme deixou os espectadores com muitas perguntas no ar. Quem são esses monges vestidos com grosseiros hábitos brancos? Que sentido tem essa vida retirada e silenciosa, tão diferente da vida dos sacerdotes e religiosos dedicados à vida pastoral, ao ensino, às missões, inseridos no mundo?
Os cartuxos defendem com firmeza o seu silêncio e retiro do mundo para poder viver seu carisma próprio e especial, por isso fogem da publicidade e raramente concedem entrevistas aos meios de comunicação. Não é de se adimirar que sejam tão pouco conhecidos.
Apesar de tudo, a vida solitária dos cartuxos sempre atraiu homens famintos do Infinito, desejosos de viver ocultos aos olhos do mundo, consagrando a sua existência totalmente a Deus no silêncio e na solidão de um ermo. Santos como Inácio de Loyola, João da Cruz e outros, sentiram o desejo de ingresar em uma cartuxa. E a Cartuja continua despertando interesse em não poucas pessoas de fé que se sentem atraídos por uma vida de fé singela, centrada no essencial.

 
Recolhemos aqui as perguntas que há alguns anos o Pe. Rosendo Roig, jesuíta, planejou para os cartuxos de Miraflores (Burgos, Espanha). Também aproveitamos para adicionar outras perguntas que os aspirantes costumam nos fazer em suas cartas e em seus retiros vocacionais. Esperamos que estes simples diálogos sirvam de orientação aos jovens desejosos de saber mais sobre o carisma e a vida diária dos cartuxos.



1. A VOCAÇÃO


- Quando um jovem aspira ingressar na Cartuxa...
- Normalmente nos escreve.
- A quem se dirige?
- Normalmente ao Pe. Prior.
- E quem lhe responde?
- O Pe. Mestre de noviços lhe manda uma carta incluindo um opúsculo informativo que dá uma ideia geral sobre as observâncias e exigências da vocação cartusiana. Hoje a maior parte dos aspirantes se dirige a nós por e-mail.
- E depois?
- Se responde e persiste em seu propósito, depois de recebermos informações favoráveis da parte de algum sacerdote que o conheça, o aspirante é convidado a passar uns dias de experiência na Cartuxa.
- Como passará esses dias?
- Para que a experiência seja mais proveitosa, ele vive em uma cela do claustro e segue os mesmos horários da Comunidade.
- Essa experiência esclarece alguma coisa?
- Depois de vários dias o aspirante terá uma ideia bastante aproximativa da vida que deseja abraçar.
- Quem se ocupa dele durante esses dias?
- O Pe. Mestre de noviços o visita com frequência, e com ele o aspirante fala amistosamente sobre a vocação e tudo o que está relacionado a esta.
- Qual é precisamente a finalidade desse diálogo?
- Aprofundar a espiritualidade cartusiana para ajudar o aspirante a descernir a sua vocação.
- Que motivações não seriam válidas para ser monge cartuxo?
- As desilusões da vida, o desejo de uma vida tranquila, sem problemas, em geral qualquer motivo egoístico. O único motivo válido é a busca dos valores que não passam, a busca mais ou menos claramente percebida (ou ao menos pressentida) de Deus. Procuramos analisar a vocação com o máximo de discrição e paciência.
- Com que idade se pode entrar na Cartuxa?
- Tende-se a desaconselhar cada vez mais o ingreso antes dos 21 anos.
- Dos 21 até que idade?
- Sem a autorização especial do Capítulo Geral ou do Reverendo Padre, que é o Superior Geral da Ordem, não se pode receber ninguém que já tenha 45 anos.
- E a autorização é concedida?
- Se a idade não supera muito os 45 anos pode ser concedida, mas só depois de ter feito uma experiência especial de três ou quatro meses antes de ser admitido como aspirante.
- Por que essa experiência?
- Porque nessa idade a adaptação às observâncias da Cartuxa é mais difícil e é preciso ver claramente se o candidato é capaz de adaptar-se antes de ser admitido como aspirante.
- E quanto à saúde, o que exige a Cartuxa?
- Antes da admisão, nossos Estatutos aconselham “consultar médicos prudentes que conheçam bem o nosso gênero de vida”. Pequenos desequilíbrios psíquicos que em outro lugar passariam quase despercebidos encontram na solidão da Cartuxa uma caixa de resonância que, aqui, impediriam de viver uma vida normal. Hoje os exames médicos são obrigatórios antes do Noviciado e da Profissão.
- Quanto ao caráter, o que exige?
- A vocação à solidão da Cartuxa exige uma vontade determinada e um juízo equilibrado.
- Então os caráteres tranquilos levam vantagem sobre os temperamentos nervosos?
- Nem sempre. Os temperamentos nervosos também podem se adaptar bem à Cartuxa.
- Sintetizando, qual é a qualidade essencial que se requer para ingressar na Cartuxa?
- Como a vida do cartuxo é uma vida de oração, dificilmente se admite a quem não sinta atração pelo recolhimento e pela oração. Na vida contemplativa nenhuma qualidade, por excelente que seja, pode suplir o espírito de piedade.
- Qual é especificamente a missão do Pe. Mestre de noviços?
- Dirigir a formação dos noviços, ajudá-los em suas dificuldades e nas “tentações que costumam insiditar os discípulos de Cristo no deserto”.
- Na Cartuxa se segue algum método específico de oração?
- Normalmente o noviço cartuxo começa sua aprendizagem nos caminhos da oração através da “lectio divina”. Este método de oração tradicional na vida monástica, sintetizado por Guigo II, o Cartuxo, consiste em ler pausadamente uma passagem da Sagrada Escritura e “ruminá-lo” lentamente. Depois, em silêncio, pode-se servir de sentimentos de agradecimento, de louvor, de contrição, que tal texto fez surgir dentro de nós para transformá-lo numa oração ao Senhor. Quando esse texto já não nos diz nada de especial, ou quando sobrevêm as distrações, volta-se a ler uma outra passagem, deixando-a descer ao coração. Este método de oração é muito simples e reduz notavelmente as distrações. Todo o ambiente da Cartuxa faz com que o monge se deixe possuir pela oração.
- Vocês dão muita importância à formação na vida de oração?
- Não poderia ser diferente. É importante que a oração do noviço tenda a simplificar-se, transformando-se num olhar singelo e amoroso ao Senhor, ainda que se trate apenas dos primeiros graus dessa oração de “simples olhar” ou de “quietude”, é conveniente que o noviço chegue a saborear a oração contemplativa. O mestre de noviços deve educá-lo com muita prudência à contemplação, consciente de que esta é a meta da oração.
- Não é exigir demais de um simples noviço?
- Normalmente se um noviço recebe a graça da experiência contemplativa de Deus, por mais simples e curta que seja, já estará preparado para superar os momentos de desânimo ou aridez e as crises que não costumam faltar, principalmente no tempo de noviciado. Viver habitualmente na presença de Deus, em relação continua e orante com a Sua Palavra no Ofício Divino, a liturgia das Horas, e nos momentos dedicados à “lectio divina”, vão arrancando o “homem velho” que dorme no fundo de cada um. O jovem monge vai se livrando da tirania dos sentidos e das paixões, do forte reclame do mundo sensível, do qual sinceramente se despediu ao entrar na Cartuxa, mas que continua alí, agarrado em seu interior. Vai superando assim a dispersão dos sentidos, a superficialidade, a inconstância, e toda a sua vida vai sendo penetrada quase imperceptivelmente da proximidade de Deus. Então, no recolhimento e no silêncio interior que invadem seu espírito, lhe são quase conaturais os sentimentos de adoração, de gratidão e de alegria espiritual. Se faltasse esse pilar da oração contemplativa, a vocação estaria sempre exposta ao desânimo, aos vaivéns dos sentimentos mutáveis, ao cansaço, à aridez e falta de gosto pelas coisas espirituais: muitas vezes são essas as causas que estão na raiz da maioria dos casos de abandono da vida monástica.


2. AS ETAPAS DO CAMINHO: MONGES DO CLAUSTRO


  1. O Postulantado


- Suponhamos que um aspirante a monge cartuxo tenha dado sinais de verdadeira vocação, no parecer dos Superiores da Cartuxa. O que se faz?
- Recebe-se o jovem como postulante.
- O que é Postulantado?
- É o período de prova que prepara para o Noviciado.
- Quanto tempo dura?
- De seis meses a um ano.
- Que tipo de vida leva o postulante?
- Uma vida muito parecida com a dos monges.
- Exatamente igual?
- São-lhe concedidas certas dispensas com o objetivo de que sua adaptação à nova vida seja gradual.
- Como se veste?
- Como secular, mas nos atos comunitários usa um manto preto.
- No que o postulante ocupa o tempo?
- Nos momentos não consagrados à oração, se dedica a formar-se no espírito da Cartuxa, aprende as cerimônias litúrgicas e estuda latim.
- Latim?
- É, latim.
- Demora muito para aprender o latim?
- Normalmente, depois de alguns meses de esforço, o postulante consegue adquirir modestos conhecimentos que lhe permitem entender os livros litúrgicos.



  1. O Noviciado


 
- Suponhamos que, concluídos os meses de postulantado, a conduta do candidato tenha sido adequada...
- Se a Comunidade lhe dá voto favorável, é admitido para o Noviciado.
- Quanto dura o Noviciado?
- Dois anos.
- O que faz o noviço durante o primeiro ano?
- Ele se forma na vita espiritual, aplicando-se ao estudo da liturgia e das observâncias cartusianas.
- E no segundo ano?
- Começa os estudos que o preparam para o Sacerdócio: dois anos e meio de Filosofia e três anos e meio de Teologia.
- E onde cursa esses estudos?
- Devido à vocação eremítica da Cartuxa, esses estudos têm lugar na solidão da cela.
- Mas como?
- Duas vezes por semana os estudantes vão à cela de um cartuxo conhecedor das matérias estudadas. Alí prestam contas de seus estudos e pedem as explicações necessárias. O cartuxo professor resolve as dificuldades que eles possam ter encontrado. Também é comum recorrer a professores de fora para assegurar melhor a formação teológica dos alunos.
- Como os noviços se vestem?
- Portam um hábito igual ao dos monges que já fizeram profissão, mas a cógula é curta e sem as faixas laterais.
- O que são as faixas laterais?
- São duas tiras de tecido que unem a parte da frente e a parte de trás da cógula. Os noviços continuam a usar o manto preto nos atos comunitários.

  1. A Profissão temporal


 
- Passados os dois anos, a Comunidade deu seu voto favorável. O que acontece com o noviço?
- Ele chega à Profissão temporal.
- Por que “temporal”?
- Porque ele emite os votos de estabilidade, obediência e conversão de costumes por três anos somente.
- Quais são os efeitos da Profissão temporal?
- Por ela, o “jovem professo” é definitivamente inscrito nos registros da Cartuxa onde emitiu os votos. Os anos de antiguidade na Ordem passam a contar a partir dessa primeira Profissão.
- E o Noviciado acabou?
- O jovem professo continua a ser membro do Noviciado como um noviço. O Pe. Mestre de noviços dirige a sua formação espiritual. Mas, no curso desses três anos, continua seus estudos eclesiásticos e aprofunda mais a formação espiritual iniciada no Noviciado.
- E passados os três anos?
- O jovem professo renova os votos por mais dois anos. A diferença é que nesses dois anos viverá com os professos de votos solenes, experimentando assim plenamente a vida que pensa em abraçar para o resto da vida.
- Continua estudando?
- No último ano habitualmente interrompe os estudos para dedicar-se mais plenamente à oração e à solidão da cela.

 
  1. A Profissão solene


 
- Já se passaram sete anos e enfim chegou a tão desejada hora da consagração definitiva.
- Dia importante para um cartuxo?
- É o maior acontecimento na vida de um cartuxo juntamente com a Ordenação ao Sacerdócio.
- A que ele se compromete?
- A viver para sempre e exclusivamente para o louvor de Deus. A Profissão solene é fruto de uma longa corrente de graças às quais o candidato correspondeu generosamente com a sua fidelidade diária.
- O que acontece depois da Profissão solene?
- Sob certos aspectos esta é mais um começo. O monge cartuxo em um ato sublime se consagrou a Deus. Agora tem de viver essa consagração dia a dia. O Sacerdócio conferido ao terminar os estudos coroa a Profissão.
- Que sentimentos preenchem a alma do cartuxo no dia de sua Profissão solene?
- Acho que os mesmos que, com acento lírico, expressou nosso Pai São Bruno na carta aos Irmãos de Chartreuse:
“Alegrai-vos, pois, meus caríssimos irmãos, por vossa feliz sorte e pela abundância de graças que Deus derramou sobre vós. Alegrai-vos por terdes escapado dos muitos perigos e naufrágios do tempestuoso mar do mundo. Alegrai-vos por terdes alcançado o refúgio tranquilo e seguro do porto mais escondido. Muitos gostariam de alcançá-lo, muitos até se esforçam para chegar até ele, sem o conseguir. E muitos outros, depois de tê-lo alcançado, dele são excluídos, porque a nenhum deles se lhes havia concedido do alto.
Portanto, meus irmãos, tende por certo que quem quer que tenha desfrutado de tão grande bem, e por um motivo ou outro o perde, lastimar-se-á por toda a vida”.

 

 

3. OS IRMÃOS CARTUXOS


- Sempre houve Irmãos na Cartuxa?
- Quando São Bruno se retirou ao deserto de Chartreuse, dois de seus companheiros eram leigos: Andrés e Guérin. Foram eles os primeiros Irmãos da Ordem. Sim, sempre houve Irmãos na Cartuxa. Com pequenas variações, o número de Irmãos na Ordem Cartusiana permaneceu durante séculos como na atualidade: sete ou oito Irmãos para cada dez Padres.
Os Monges do Claustro e os Irmãos são duas formas distintas de conjugar uma mesma vocação. Uns e outros compartilham sob formas complementares a responsabilidade da missão que incumbe às comunidades cartusianas: fazer com que exista no seio da Igreja uma família de solitários.
- Explique.
- Os monges do claustro vivem em suas celas a maior parte do dia.
- E os Irmãos?
- Mesmo participando da mesma vocação solitária que os Padres, eles a realizam de uma forma distinta.
- Como?
- Os Irmãos empregam certo tempo ao trabalho manual fora de suas celas assumindo as tarefas materiais do mosteiro.
- Fale-me mais sobre os Irmãos.
- Os Irmãos cartuxos, desde o começo até hoje, têm impressionado por sua estabilidade e seu elevado nível espiritual. Têm na Cartuxa um lugar próprio perfeitamente definido.
- E a que se deve isso?
- À vigilância dos Capítulos Gerais, à proximidade do Prior e do Procurador – que é o monge encarregado dos assundos materiais do mosteiro –, mas sobretudo ao clima espiritual de silêncio e solidão do qual os Padres e os Irmãos participam igualmente, ainda que segundo modalidades distintas.
- Qual é a formação de um Irmão cartuxo?
- É um caminho parecido ao dos monges do claustro. A duração do Postulantado varia e depende em boa parte da formação espiritual do candidato: pode durar de seis meses a um ano. Se a conduta do postulante deixa entrever uma vocação autêntica, após a votação da Comunidade ele é admitido ao Noviciado de Converso. Sua duração é de dois anos.
- Quem é o Pe. Mestre dos Irmãos?
- Tradicionalmente seria o Pe. Procurador, mas ultimamente é comum que seja o mesmo dos monges do claustro. O Pe. Mestre os dirige na formação e os ajuda a superar as provas e dificuldades que encontram no caminho.
- Quando termina satisfatoriamente o Noviciado, o que faz?
- O Irmão faz sua primeira Profissão por três anos. A partir desse momento, ele fica constituído como membro da Ordem. No final desses três anos, o converso temporal renova seu compromisso por mais dois anos. Durante todo esse tempo continua sob a direção do Padre Mestre.
- Então, para chegar a ser Irmão cartuxo são necessários sete anos de formação.
- Isso. E terminados os sete anos de formação chega o momento tão desejado de consagrar-se definitivamente a Deus através dos votos solenes. A cerimônia da Profissão acontece assim: durante a Missa conventual ele lê a fórmula da Profissão. Depois a deposita sobre o altar como símbolo de sua entrega a Deus.
- Os Irmãos recebem uma formação especial?
- A formação é sólida, adaptada ao seu estado. A Ordem dispôs para eles o que hoje chamamos “formação permanente”. Quer dizer, durante os primeiros 7 anos de suas vidas como cartuxos, orientados pelo Pe. Mestre, dedicam um tempo todos os dias ao estudo da Bíblia, de Teologia, Liturgia, Espiritualidade... Esta formação se adapta a cada Irmão. Ao longo de suas vidas podem continuar estudando.
- O que os Irmãos lêem?
- Eles têm à sua disposição a Biblioteca da Casa. As seções de Espiritualidade e Vidas de santos são as que mais frequentam.
- Quantas horas por dia trabalha um Irmão?
- Normalmente cinco, distribuídas entre a manhã e a tarde, mas durante o período de formação são reduzidas para que possam dedicar mais tempo à própria formação.
- Em que consiste o trabalho na Cartuxa?
- Antes de tudo é bom sublinhar que o trabalho dos Irmãos é um trabalho monástico. Eles não são empregados cuja principal razão de ser é a de fazer funcionar o mosteiro. Quando dizemos que o seu trabalho é um trabalho monástico queremos dizer que se trata de um ato religioso que os ajuda a progredir na prática das virtudes e que os aproxima de Deus.
- Como conseguem em pleno trabalho conservar o espírito de oração e de solidão?
- Os Estatutos da Ordem aconselham a recorrer, durante o trabalho, a breves impulsos em direção a Deus (chamados “orações jaculatórias”). Pode-se também interromper o trabalho para um breve momento de oração.
- Os cartuxos trabalham em grupo?
- Procura-se, na medida do possível, que cada um trabalhe individualmente na obediência que lhe foi confiada.
- É importante o silêncio?
- Sim, é muito importante o silêncio durante o trabalho. Nossos Estatutos dizem: «Só o recolhimento durante o trabalho conduzirá o Irmão à contemplação».
- Tanta concentração espiritual não atrapalha a eficácia do trabalho?
- Normalmente não. Em seu espaço de trabalho, o Irmão tem liberdade e iniciativa. E a dedicação e o interesse por seu trabalho costumam transformar os Irmãos Cartuxos em verdadeiros especialistas.
- E a oração “oficial”, a oração litúrgica, como é regulada para eles?
- É como a dos monges do claustro, através da oração das Horas canônicas, ainda que um pouco reduzida.
- Os Irmãos suprem as Horas canônicas com alguma coisa?
- Frequentemente os Irmãos preferem rezar determinado número de Pai-Nossos e Ave-Marias por cada Hora do Ofício Divino. Assim era antigamente.
- Quando eles participam da Missa?
- Podem participar da Missa celebrada pelo Pe. Procurador, bem cedo. E, se preferem, podem assistir à Missa conventual com os Padres.
- Como vocês não tomam café da manhã, o que fazem e onde ficam os Irmãos entre a Missa e a hora do trabalho?
- Em suas celas, dedicados à oração e à leitura espiritual.
- E quando acaba o trabalho?
- Ao meio-dia, antes do almoço, fazem uma visita de quinze minutos ao Santíssimo.
- E à tarde?
- Frequentemente interrompem o trabalho para ir à igreja celebrar as Vésperas com os Padres, mesmo não sendo obrigados.
- A que horas acaba o dia de trabalho?
- Às seis e meia. Antes de jantar, alguns aproveitam para fazer outra visita de quinze minutos ao Santíssimo.
- E depois do jantar?
- Fazem as orações que fecham o dia cartusiano e vão dormir.
- A que horas?
- Até as oito da noite.
- E a que horas se levantam?
- À meia-noite, para celebrar as Matinas com os Padres.
- E voltam a dormir?
- Sim, até as duas da manhã, antes dos Padres, pois não são obrigados a assistir às Laudes, salvo em dias festivos.
- E ao chegar na cela, o Irmão volta a dormir?
- Não imediatamente. Ao chegar na cela, dedica quinze minutos à chamada “oração materna”, que o faz tomar consciência de seu papel de intercessor. Prostrado no chão, expõe lentamente ao Senhor as necessidades da Igreja e do mundo. Ninguém fica excluso das intenções dessa oração: desde o Papa até o último pecador oculto na noite enquanto descansam seus irmãos, os homens.


4. OS ASPECTOS MAIS CARACTERÍSTICOS DA ESPIRITUALIDADE CARTUSIANA

 

Deus só

- Diferentemente das ordens religiosas de vida apostólica, que se dedicam à pregação, ao ensino, ao cuidado dos enfermos etc., a que se dedica a Ordem Cartuxa?
- Nossa missão na Igreja é o que tradicionalmente se chama de “vida contemplativa”.
- O que é, então, a vida contemplativa para um cartuxo?
- Um mistério que se aproxima do mistério de Deus, de cuja grandeza e incompreensibilidade ela participa de certa forma. Mais além do cuidado pelas coisas do mundo; mais além, inclusive, de todo ideal humano e da própria perfeição, o monge cartuxo busca a Deus. Ele vive só para Deus, dedicado de corpo e alma a louvar a Deus. Este é o segredo da vida puramente contemplativa: viver só para Deus, não desejar mais que a Deus, não querer saber de outra coisa senão de Deus e não possuir mais que a Deus. Aquele que reconhece a Deus como o Bem supremo, compreederá o valor dessa vida de consagração radical que é a vida do cartuxo.
- É um lindo ideal.
- É, mas esse lindo ideal exige um clima adequado para acontecer.
- E qual é o clima adequado?
- As nossas usanças e observâncias criam esse clima e revelam assim o seu sentido. Consideradas isoladamente, sem relação com o seu fim, seriam incompreensíveis e não passariam de um monte de práticas estranhas.
- Vejamos...

 


A solidão e o silêncio

- Qual é a palavra que mais se repete na Cartuxa?
- Se alguém se desse ao trabalho de buscar o vocábulo mais repetido nas páginas de nossos Estatutos, seriam certamente as palavras “solidão” e “silêncio”.
- Sua espiritualidade têm algum slogan?
- A espiritualidade cartusiana é a espiritualidade do deserto.
- É uma tradição?
- Assim afirmam nossos Estatutos quando dizem: “Os fundadores de nossa Ordem seguiam uma luz vinda do Oriente, a dos antigos monjes que, consagrados à solidão e à pobreza de espírito, povoaram os desertos numa época em que a lembrança ainda viva do sangue derramado pelo Senhor ainda ardia em seus corações”.
- Essa espiritualidade lhes é própria, ou tem fundamentos em outro lugar?
- A Sagrada Escrutura e a tradição da Igreja oferecem argumentos para colocar a vida solitária acima de qualquer outra vocação.
- Apesar de reconhecer que a solidão é somente um meio, vocês lhe tributam um verdadeiro culto. Por quê?
- Porque, como dizem muito bem os nossos Estatutos, citando Dom Guigo, quarto sucessor de são Bruno no eremitério Chartreuse, a solidão é o meio mais apto para a união com Deus: “o gosto pela salmodia, a aplicação à leitura, o fervor da oração, a profundidade da meditação, a elevação da contemplação e o dom das lágrimas, não podem encontrar ajuda mais poderosa que a solidão”.
- Então essa importância que a Cartuxa dá à solidão tem alguma repercussão na estrutura jurídica da Ordem?
- Toda a legislação da Cartuxa tende a conservar e favorecer essa solidão e esse silêncio, que são os traços mais marcantes da espiritualidade do deserto e da espiritualidade cartusiana.
- Pode me indicar alguns aspectos de seus Estatutos sobre a vida de solidão do cartuxo?
- Os Estatutos proibem ao cartuxo, por exemplo, pregar, confessar e fazer acompanhamento espiritual, coisas em si excelentes, mas que não estão na linha da vocação eremítica.
- Tanta rigidez não poderia assustar a Igreja Católica contemporânea?
- Ao contrário, isto é precisamente o que a Igreja pede hoje ao cartuxo. O Concílio Vaticano II disse claramente que o dever dos contemplativos é “ocupar-se só de Deus na solidão e no silêncio... por mais urgente que seja a necesidade de apostolado ativo” (Perfectae Caritatis, 7). Talvez seja “silêncio” a palavra de que mais necessita o mundo hoje.
- Vocês, os cartuxos, defendem sua vocação contemplativa com a solidão, mas como conseguem se livrar da invasão dos meios de comunicação social?
- Para evitar esse perigo, na Cartuxa não há rádio, nem televisão, e os Estatutos recomendam prudência com as leituras profanas.
- Então vocês vivem alheios ao mundo de hoje?
- Nossos Estatutos nos falam da necessidade de “viver alheios aos barulhos do século”, como algo fundamental para a vida solitária. Mas cabe ao Pe. Prior o cuidado de transmitir aos monges as notícias que não seria bom que ignorassem, para que a comunidade possa apresentar ao Senhor as necessidades de todos os homens.
- Essa observância dura e peremptória não corre o risco de materializar a vida da Cartuxa?
- Toda a nossa legislação sobre o silêncio e a solidão constitue a letra de nossas observâncias. Nelas o monge vê refletido o clima propício para a nossa vocação eremítica, mas sabemos muito bem que isso não é tudo e nem o principal.
- Em uma palavra, o que é necessário para um cartuxo?
- Que se enamore da solidão para vivê-la em intimidade com o Senhor.
- O cartuxo que é fiel a esses princípios é feliz?
- Sim, porque o monge que é fiel à sua vocação comrpreende que Deus o chama a uma solidão e a um silêncio de espírito cada vez mais profundos.

O repouso espiritual

- Solidão e silêncio cada vez mais profundos?
- Sim, a solidão exterior cria o ambiente propício, necessário para que se possa desenvolver uma solidão mais perfeita, a solidão interior.
- Em que consiste a solidão interior?
- Em um processo espiritual pelo qual a memória, o entendimento e a vondade vão perdendo o interesse e o gosto pelas coisas passageiras. Por sua vez, Deus começa a ser percebido como o único que pode saciar as profundas aspirações do espírito. Só quando o cartuxo descobre, admirado, que enfim é só Deus que o preenche, começa a ser um autêntico “monge” contemplativo. Esta descoberta produz uma sensação de libertade e gozo interior que é difícil expresar com palavras.
- Esta experiência é algo típico e exclusivo da Cartuxa?
- Se trata de um processo espiritual já descrito na espiritualidade dos antigos monges do deserto, tal como Antão, Pacômio, Evágrio, e em geral nos místicos cristãos de todos os tempos.
- Como vocês, cartuxos, o concretizam?
- Acho que todo esse processo espiritual poderia ser resumido em uma palavra muito cara a nosso pai São Bruno e aos primeiros cartuxos: ”quies”, isto é, o repouso espiritual.
- Se entendo bem, isso significa que todo o ambiente da Cartuxa tende a isso?
- A um clima de solidão e silêncio que elimina o barulho perturbador dos desejos e imagens terrenos. Se trata de uma atenção tranquila e sossegada da mente em Deus, favorecida pela oração e pela leitura pausada. Chega-se assim a essa “quies”, ou “repouso” da alma em Deus. Esse repouso divinizado, simples e gozoso faz com que o monge toque de alguma forma a beleza da vida eterna.
- Que grau de contemplação é esse?
- Digamos que a “quies”, é a meta do cartuxo, é onde anela chegar.

Fidelidade à Cruz

- Vocês têm a fama de serem muito penitentes.
- Sobre o tema das penitências da Cartuxa, como sobre tantos outros, existem as ideias mais estranhas. Para nós as penitências são simples “meios para aliviar o peso da carne para poder seguir o Senhor mais prontamente”, como dizem os nossos Estatutos.
- Mas você sabe que hoje em dia a penitência individual não é considerada um meio infalível... Vivemos em um tempo de comprensão e diálogo.
- É, nos dias de hoje, a penitência e, em geral, tudo o que supõe sacrifício e abnegação, é malvisto; costuma-se falar disso com notável inconsciência. Todo o mundo acha razoável que um esportista se prive de muitas coisas boas e submeta o seu corpo a duros treinamentos.
- Vocês, monges cartuxos, desejam viver segundo o “homem novo” da Sagrada Escritura. Pode me dizer precisamente quais são as penitências básicas?
- A separação do mundo, a ausência de notícias e de passatempos... São privações que talvez custem mais aos noviços. Tem também o sono dividido em dois tempos, a simplicidade no vestir, a frugalidade na alimentação...
- O que vocês comem?
- Ao meio-dia almoçamos à base de hortaliças, peixe ou ovos e fruta.
- Quando não fazem jejum, o que jantam?
- Nos dias em que não jejuamos, o jantar consiste em dois ovos, ou o seu equivalente em peixe, e fruta.
- Quando fazem jejum?
- Os jejuns começam no dia 15 de setembro, um dia depois da Exaltação da Cruz, e duram até a Páscoa, isto é, uns sete meses.
- Em que consiste o jejum?
- Em uma só refeição ao meio-dia. À tarde se faz um lanche, geralmente pão e uma bebida.
- Na sexta-feira vocês têm um regime especial?
- Todas as semanas fazemos uma abstinência, em que tomamos apenas pão e água. Geralmente é feita na sexta-feira, em memória da Paixão do Senhor, mas se na semana ocorre alguma festa, essa abstinência é feita nas vésperas da festa.
- Vocês comem carne?
- Tradicionalmente, desde os tempos de São Bruno, jamais se come carne, nem se serve carne a ninguém nas Casas da Ordem.
- Os aspirantes e os noviços também são obrigados a seguir todas essas páticas de jejum?
- A adaptação ao nosso gênero de vida requer tempo e prudência. Por isso, os aspirantes e os noviços se iniciam progressivamente em nossos usos e costumes, sob a vigilância do Pe. Mestre de noviços, que os aconselha.
- E os doentes?
- Os nossos Estatutos dizem: “Se em alguma circunstância ou com o passar do tempo um monge percebesse que alguma de nossas observâncias supera as suas forças e, em vez de impulsioná-lo, o atrapalha na sequela de Cristo, então, com confiança filial, trate do assunto com o seu prior e com ele decida a medida oportuna para si, ao menos temporariamente”.
- É permitido fumar?
- O tabaco é proibido “por motivos de abnegação e pobreza”.
- Resumindo...
- São esses os aspectos mais marcantes da ascese cartusiana. A Ordem os julga suficientes e, com um grande senso de prudência, ordena formalmente que “ninguém se entregue a práticas de penitência fora dos indicados nos Estatutos sem o conhecimento e a aprovação da parte de seu Prior”. A Cartuxa herdou de São Bruno sua moderação e seu equilíbrio. Em sua carta ao amigo Raul, ele descreve com entusiasmo a amenidade das paisagens da Calábria e, se seu amigo se admirara dessas expansões menos espirituais, explica: “a nossa frágil mente, fatigada por uma austera disciplina e pela aplicação às coisas espirituais, muitas vezes com essas coisas encontra alívio e readquire vigor. Na verdade, o arco sempre tenso perde a força e torna-se menos apto para o seu ofício”.
- Para concluir este tema, quais são os principais traços do espírito cartusiano?
- A união com Deus, tender à oração contínua na solidão e no silêncio, a “quies” (repouso contemplativo), a simplicidade de vida, a austeridade: estes são os traços principais do espírito cartusiano, que coincidem com as linhas mestras da espiritualidade do deserto.


5. AS PECULIARIDADES DA CARTUXA


  1. O cartuxo, um eremita integrado em uma família monástica


- De tudo o que falamos até agora, posso perceber que o que é mais característico na vida do cartuxo é viver na solidão e no silêncio. Eu li em algum lugar que dentre todas as Ordens monásticas, pelo menos no Ocidente, vocês são a que vive mais a vida eremítica mais puramente.
- É provável. Já lhe disse que o cartuxo é antes de mais nada um eremita que passa quase o dia todo em sua cela ou ermo. Esse é o traço marcante da nossa identidade e o nosso carisma específico.
- Mas esse carisma de solidão da Cartuxa não corre o risco de talvez obscurecer aspectos importantes e evangélicos como o amor e o serviço ao próximo? Acho que foi Santo Agostinho que disse: “Como posso lavar os pés dos meus irmãos se vivo trancado em um ermo?”.
- Essa frase é de São Basílio, pai do monaquismo oriental. Mas não podemos esquecer que, na Igreja, como dizia São Paulo, os membros não têm todos a mesma função. “A vida dos cartuxos é consagrada ao louvor de Deus e à oração de intercessão por todos os homens”.
- E daí?
- Daí que, embora o nosso carisma específico não preveja a assistência dos enfermos, nem a pregação, nem o ensino dos jovens, a Cartuxa não é uma instituição puramente eremítica; a vida solitária é equilibrada por uma parte importante de vida comunitária que também é parte essencial do nosso carisma.
- Ah, é?
- É, e isso desde o começo da Ordem. Apesar da forte atração que São Bruno tinha pelo deserto, é certo que ele não foi um solitário do estilo tradicional, como os eremitas Paulo, Antão e Bento o foram: estes iniciaram a vida monástica vivendo completamente sozinhos no desecto. E São Bruno? Nunca esteve sozinho, pois o acompanhava sempre um grupo de amigos que compartilhavam o seu ideal.
- Esse é um detalhe interessante.
- Para nós é importante viver como eremitas em nossas celas, mas formando ao mesmo tempo uma família unida no interior do mosteiro. No passado se usava o termo “família” para designar as comunidades cartusianas, por causa do número reduzido de seus membros. Hoje os nossos Estatutos fazem o mesmo.
- Como esse aspecto “familiar” é vivido na prática?
- Por exemplo: somos nós mesmo que cuidamos de nossos enfermos e idosos em tudo, acompanhando-os sempre quando necessário, ainda que para isso tenhamos que sair da cela. E o fazemos com carinho, convencidos de que o amor fraterno está sobre qualquer outra consideração e valor espiritual.
- Começo a entender. E percebo até que suas recreações e passeios comunitários têm também algo a ver com isso da vida em família.
- Acertou em cheio. A recreação do domingo e o Passeio semanal dão à vida eremítica da Cartuja um ambiente familiar, humano e evangélico que nos ajuda a conservar um saudável equilíbrio.

  1. A cela


- Você citou várias vezes a “cela” como se fosse uma coisa especificamente cartusiana. Como é a cela do cartuxo?
- De todas as dependências do mosteiro, as celas do grande claustro são a coisa mais característica da Cartuxa. Basicamente, as celas de todas as cartuxas são compostas dos mesmos elementos, mas a disposição interna pode variar.
- Pode me descrever brevemente as celas?
- As celas são interligadas pelo grande claustro, que é um longo corredor, geralmente em forma de quadrilátero. A palavra “cela”, que os cartuxos usam desde a origem da Ordem para designar seus ermos, evoca espontaneamente a ideia de um único cômodo. Na verdade, a cela do cartuxo é uma pequena casa de um ou dois pavimentos, em cujo espaço há lugar para uma sala de estudos, um oratório, uma pequena oficina de carpintaria e até para uma horta ou jardim. Sua relativa amplitude se explica pelo gênero de vida especialmente eremítico da Ordem: o cartuxo passa a maior parte de sua vida na cela. Nossos Estatutos dizem que a cela é para o cartuxo como a água para o peixe e o aprisco para as ovelhas.
Uma letra do alfabeto talhada em madera e pregada em cada porta distingue umas celas das outras. O primeiro cômodo da cela é um amplo saguão presidido por um crucifixo e uma imagem de Nossa Senhora. A seus pés, de joelhos, o cartuxo reza uma Ave Maria sempre que entra na cela. Por isso, esse cômodo se chama “Ave Maria”. Perto da porta há um armário-mesa com os utensílios necessários para as refeições. Em um canto pode-se ver uma portinha, um guichê numa parede, no qual o Irmão despenseiro deposita a comida que o monge retirará no momento de tomar sua refeição. O cartuxo come em sua cela; somente nos domingos e solenidades almoça com a Comunidade, no refeitório.
Da “Ave Maria” se passa a um cômodo bem iluminado que serve de oficina de carpintaria. Para trabalhar a madeira, dispõe de um torno a pedal, de um banco de carpintaria e das ferramentas mais comuns. Em um extremo da oficina, uma porta nos conduz à horta/jardim, que cada um cultiva segundo os póprios gostos. O cuidado do jardim serve tanto como exercício físico, como uma agradável recreação e distensão espiritual.
Voltando à “Ave Maria”, uma escadaria nos conduz ao cômodo principal, de uns seis metros por cinco. É iluminada por uma grande janela que se abre para o jardim. Eis a mobília: uma mesa e uma cadeira de madeira; uma estante de livros; ao fundo, presidindo a habitação, um pequeno oratório com um reclinatório para as orações; ao lado do oratório, uma humilde cama; e junto à porta de entrada, outra porta que dá para o banheiro. Essa é a cela do cartuxo. Alí ele passa os seus dias, os seus anos, em silêncio, a sós com Deus.
- A cela é um céu ou um purgatório?
- O primeiro, para quem recebeu o dom precioso dessa vocação que é viver só, para Deus. Os monges de todas as épocas experimentaram e cantaram a beleza da vida solitária na cela, onde passam seus dias na intimidade do Senhor. Os nossos Estatutos se unem a essa longa tradição monástica dizendo: “Alí Deus e seu servo se entretêm em frequentes conversas, como fazem os amigos. Alí, a alma fiel se une ao Verbo de Deus, a esposa ao Esposo, a terra ao céu, o humano ao divino”.
- Ok, mas devido ao ambiente cheio de barulho, de imagens e distrações característico da nossa sociedade, não fica difícil para os jovens adaptar-se a uma vida de silêncio e de solidão tão estrita como a que se vive na Cartuxa?
- Normalmente a cela exige para o noviço um processo mais ou menos longo e custoso de adaptação – ou melhor, eu diria de desintoxicação – para fazer silêncio em seu interior, acalmar a fantasia, os afetos, os sentidos, até acalmar o espírito, concentrar-se no essencial, nos valores transcendentes que, em definitiva, são os únicos que podem saciar os desejos mais profundos da alma.
- Que conselhos daria a um jovem que chega do mundo e começa a viver a sua nova vida na cela, uma vida tão diferente da que viveu até então?
- O Pe. Mestre de noviços lhe indicará prudentemente os horários precisos para ocupar seus dias de forma organizada e útil na leitura, na escritura, na salmodia, na oração, na meditação, na contemplação e no trabalho. Ensinar-lhe-á também a lutar contra as tentações de desânimo, a habituar-se pouco a pouco a uma tranquila escuta do coração e a deixar que Deus entre em seu íntimo. Acima de tudo, aconselhar-lhe-á a confiar no Senhor: Ele lhe deu essa vocação de predileção e lhe dará também as graças necessárias para levá-la a bom termo.

  1. Os horários da Cartuxa:


Matinas e Laudes


- Os horários da Cartuxa são um pouco estranhos, não?
- É, são um tanto originais.
- A que horas vocês vão dormir?
- Às 19h30min ou 20h. No verão, a essa hora, o sol ainda está acima do horizonte.
- Deitar para dormir às 19h30min ou 20h! E a que horas se levantam?
- Às 23h30min da noite. A essa hora o sino da igreja chama para a oração.
- Então o dia do cartuxo começa às 23h30min da noite?
- Isso.
- E o que fazem os cartuxos a essa hora?
- Iniciam a sua missão de louvor rezando as Matinas do Ofício da Bem-Aventurada Virgem Maria.
- Já começam bem o dia.
- À meia-noite e quinze o sino toca de novo.
- Pra quê?
- Para que a comunidade se dirija à igreja. Então vão todos caminhando pelos claustros solitários e pouco iluminados.
- E chegados à igreja?
- Colocam-se os livros de coro sobre as estantes, apagam-se as luzes e entra-se em um profundo silêncio. Ao sinal do Prior, inicia-se o canto das Matinas.
- O que são as “Matinas”?
- As Matinas são compostas por duas partes chamadas “noturnos”, com seis salmos cada um. Nos dias festivos há um terceiro noturno de três cânticos. A salmodia é grave, quase lenta. Ao final de cada noturno há leituras da Sagrada Escritura ou dos Padres da Igreja, e a cada leitura segue o canto de um responsório. Nos domingos e em dias de festas importantes, as leituras e seus respectivos responsórios são doze; nos dias de semana há só uma leitura (no verão europeu) ou três (no inverno europeu). O canto Te Deum e a leitura do Evangelho do dia concluem as Matinas de doze leituras; os dias feriais terminam com as preces de intercessão pelas necessidades da Igreja e do mundo. Ao final das Matinas se guardam alguns minutos oração silenciosa e então inicia-se o Ofício das Laudes. Depois, em suas celas, os Padres rezam as Laudes do Ofício da Bem-Aventurada Virgem Maria e se deitam sem demora.
- A que horas?
- Isso depende da duração os Ofícios. Frequentemente às 3h da manhã.
- E por que tudo isso?
- Porque o cartuxo tem uma predileção por essas horas de louvor noturno, quando o silêncio da noite convida a uma oração mais fervorosa.

A manhã

- E a que horas vocês acordam de novo?
- Às 6h45min. Os Irmãos que não participam das Laudes se levantam uma hora antes. Às 7h os Padres rezam a Hora Prima, seguida de um momento de meditação.
- E a Missa?
- Às 8h nos reunimos na igreja para a celebração da Missa conventual. Essa Missa é sempre cantada, e dura aproximadamente uma hora. Nos domingos e nas solenidades, a Hora Terça precede a Missa, que nos dias festivos costuma ser concelebrada.
- E quando acaba a Missa conventual?
- Os Irmãos, em suas celas, fazem quinze minutos de ação de graças pela Missa, e depois trabalham até a Hora Sexta. Os Padres costumam celebrar a Missa recitada em umas capelas destinadas a esse fim. De volta à cela, rezam Terça e reservam boa parte do tempo à leitura espiritual.
- Mas vocês não tomam café da manhã? O que fazem até a hora do almoço?
- Os monges em formação estudam e se exercitam em algum trabalho manual: carpintaria, encadernação, pintura, cuidado do pequeno jardim/horta de sua cela...
- A que horas almoçam?
- Às 11h30min ou ao meio-dia, depois de rezar a Hora Sexta. Almoça-se solitariamente na cela, exceto nos domingos e nas solenidades. Normalmente o almoço é depois da oração do Angelus.
- E depois do almoço?
- Até às 13h, o cartuxo costuma se distrair um pouco no jardim, fazendo algum trabalho, caminhando...
- E depois disso?
- Os monges rezam a Hora Nona e o tempo até às Vésperas é dedicado ao trabalho manual, à leitura, ao estudo e à oração. Os Irmãos voltam a seus trabalhos em suas respectivas “obediências” ou oficinas da cartuxa: a cozinha, a alfaiataria, a despensa, o campo, a marcenaria, obras...
- Esses horários não mudam nunca?
- Nos domingos e solenidades a Hora Nona é cantada na igreja e logo após os monges se reúnem na sala capitular, onde escutam uma leitura do Evangelho ou dos Estatutos. De lá vão à horta, ou, se o tempo não o permite, ao claustro, onde têm um encontro fraterno.

A tarde

- Como vocês passam a tarde?
- Todos os dias às 16h se cantam as Vésperas na Igreja. O Ofício das Vésperas dura meia hora e é composto por um hino, quatro salmos com suas respectivas antífonas, uma leitura breve, um responsório, o Magnificat, e termina com as preces de intercessão e o canto da Salve Regina, cujos texto e melodia são ligeiramente diferentes dos do rito romano. Depois das Vésperas o tempo é consagrado aos exercícios espirituais.
- A que horas vocês jantam?
- O jantar, ou, nos dias de jejum, o “lanche”, é geralmente às 17h45min.
- E o que fazem depois do jantar?
- Nesse momento sobra um tempo livre para a distensão, seja no jardim, seja pela cela.
- Quando e como acaba o dia do cartuxo?
- Às 19h o sino toca o Angelus da tarde. Os monges podem prolongar a oração ou a leitura espiritual ainda por uma hora, mas é aconselhável não demorar para deitar-se. O dia acaba com a oração de “Completas”, Hora do Ofício na qual se agradece a Deus por todas as graças recebidas durante o dia e se lhe suplica proteção para a noite que está chegando. Assim termina, entre as 19h30min e as 20h, o dia do monge cartuxo.

 

Horários em função da vida litúrgica.

- Suponho que os seus horários sejam estabelecidos em função da vida litúrgica. Certo?
- Isso mesmo. As Matinas no coração da noite, a Missa conventual de manhã cedo e as Vésperas à tarde são os momentos fortes do dia, nos quais os monges deixam as suas celas para ir à igreja.
- Que lugar ocupa a liturgia na vida do cartuxo?
- A nossa vocação é ser com o Cristo e no Cristo um louvor a Deus Pai, através do nosso ministério de louvor e de intercessão. A Eucaristia, celebrada e cantada em melodias gregorianas a cada manhã em comunidade, é, segundo os nossos Estatutos, “o centro e o cume da nossa vida”.
- E o Ofício Divino?
- O cartuxo reza boa parte do Ofício divino sozinho na cela, mas sabe bem que a sua voz não é uma voz individual, isolada, perdida na imensidão do mundo, mas que é a mesma oração de Cristo e de toda a Igreja. Na liturgia, o Cristo, na qualidade de nossa Cabeça, reza em nós, de modo que nele nós podemos reconhecer a nossa voz, e em nós a sua.


6. As origens da Ordem Cartuxa


- Antes de terminar, faço-lhe uma pergunta elementar: o que é a Cartuxa?
- É uma Ordem monástica nascida no final do século XI, um caminho evangélico que percorreu mais de nove séculos.
- Quem é o fundador?
- Mais que um “fundador”, eu diria o “iniciador” deste gênero de vida foi São Bruno, nascido em Colônia, Alemanha, por volta do ano 1030. Foi estudante, depois cônego e reitor da famosa escola catedralícia de Reims, França. Com seis companheiros, retirou-se em um lugar solitário e escondido nos Alpes do Delfinado, o maciço de Chartreuse (Cartuxa), a uns trinta quilômetros de Grenoble. A casa geral da Ordem se encontra ainda hoje naquele lugar.
- Porque vocês dizem que São Bruno não foi o fundador da Ordem, mas o seu iniciador?
- Porque, na verdade, ele não escreveu nenhuma regra monástica, nem sequer permaneceu por muito tempo no eremitério de Chartreuse. Solicitado pelo Papa Urbano II, que havia sido seu discípulo em Reims, teve de ir a Roma e acompanhar o Papa em seus deslocamentos pela Itália meridional. Urbano II compreendeu o carisma de São Bruno, que era profundamente atraído pela vida eremítica, e autorizou que se retirasse novamente em um lugar solitário da Calábria, em Santa Maria da Torre. Lá fundou com outros companheiros um eremitério similar ao de Chartreuse. Alí morreu em 1101, e alí repousam seus restos mortais. Mas foi a primeira fundação da Cartuxa, nos Alpes franceses, que conservou o seu espírito e, com o passar dos anos, se converteu na Ordem monástica dos Cartuxos.