Ele era um homem de pequena estatura”,
afirmam os Atos de Paulo, escrito apócrifo do segundos éculo,
“parcial-mente calvo, pernas arqueadas, de compleição robusta, olhos próximos um do outro,
enariz um tanto curvo.” Se esta descrição merecer crédito, ela fala um bocado mais a respeito desse homem natural de Tarso, que viveu quase sete décadas cheias de acontecimentos após o
nascimento de Jesus. Ela se encaixaria no registro do próprio Paulo
de um insulto dirigido contra ele em Corinto.
“As cartas, comefeito, dizem, são graves e fortes; mas a presença pessoal dele
é fraca, e a palavra desprezível” (2 Co 10:10). Sua verdadeira aparência teremos
de deixar por conta dos artistas, pois não sabemos
ao certo.Matérias mais importantes, porém, demandam atenção —
o que ele sentia, o que ele ensinava, o queele fazia.
Sabemos o que esse homem de Tarso chegou a crer acerca da pessoa e obra de Cristo,
e deoutros assuntos cruciais para a fé cristã. As cartas procedentes de sua pena,
preservadas no NovoTestamento, dão eloqüente testemunho da paixão de suas convicções e
do poder de sua lógica. Aqui e acolá em suas cartas
encontramos pedacinhos de autobiografia. Também temos, nos Atos dos Apóstolos,
um amplo esboço das atividades de Paulo. Lucas, autor dos Atos, era médico e
historiador gentio do primeiro século. Assim, enquanto o teólogo tem material
suficiente para criar intérminos debates acerca daquilo em que Paulo
acreditava, o historiador dispõe de parcos registros. Quem se der ao trabalho
de escrever a biografia de Paulo descobrirá lacunas na vida do apóstolo que só
poderão ser preenchidas por conjeturas. A semelhança de um meteoro brilhante,
Paulo lampeja repentinamente em cena como um adulto numa crise religiosa,
resolvida pela conversão. Desaparece por muitos anos de preparação. Reaparece
no papel de estadista missionário, e durante algum tempo podemos acompanhar
seus movimentos através do horizonte do primeiro século. Antes de sua morte,
ele flameja até entrar nas sombras além do alcance da vista.
Sua Juventude:
Antes, porém, que possamos entender Paulo, o missionário
cristão aos gentios, é necessário que passemos algum tempo com Saulo de Tarso,
o jovem fariseu. Encontramos em Atos a explicação de Paulo sobre sua
identidade: “Eu sou judeu, natural de Tarso, cidade não insignificante da
Cilícia” (At 21:39). Esta afirmação nos dá o primeiro fio para tecermos o pano
de fundo da vida de Paulo.
A) Da Cidade de Tarso.
No primeiro século, Tarso
era a principal cidade da província da Cilícia na parte oriental da Ásia Menor.
Embora localizada cerca de 16 km no interior, a cidade era um importante porto
que dava acesso ao mar por via do rio Cnido, que passava no meio dela.
Ao norte de Tarso erguiam-se imponentes, cobertas de neve,
as montanhas do Tauro, que forneciam a madeira que constituía um dos principais
artigos de comércio dos mercadores tarsenses. Uma importante estrada romana
corria ao norte, fora da cidade e através de um estreito desfiladeiro nas
montanhas, conhecido como “Portas Clicianas”. Muitas lutas militares antigas
foram travadas nesse passo entre as montanhas.
Tarso era uma cidade de fronteira, um lugar de encontro do
Leste e do Oeste, e uma encruzilhada para o comércio que fluía em ambas as
direções, por terra e por mar. Tarso possuía uma preciosa herança. Os fatos e
as lendas se entremesclavam, tornando seus cidadãos ferozmente orgulhosos de
seu passado.
O general romano Marco Antônio concedeu-lhe o privilégio de libera
civitas (“cidade livre”) em 42 a.C. Por conseguinte, embora fizesse
parte de uma província romana, era autônoma, e não estava sujeita a pagar
tributo a Roma. As tradições democráticas da cidade-estado grega de longa data
estavam estabelecidas no tempo de Paulo.
Nessa cidade cresceu o jovem Saulo. Em seus escritos,
encontramos reflexos de vistas e cenas de Tarso de quando ele era rapaz. Em
nítido contraste com as ilustrações rurais de Jesus, as metáforas de Paulo têm
origem na vida citadina.
O reflexo do sol mediterrânico nos capacetes e lanças
romanos teriam sido uma visão comum em Tarso durante a infância de Saulo.
Talvez fosse este o fundo histórico para a sua ilustração concernente à guerra
cristã, na qual ele insiste em que “as armas da nossa milícia não são carnais,
e, sim, poderosas em Deus, para destruir fortalezas” (2 Co 10:4).
Paulo escreve de “naufragar” (1 Tm 1:19), do “oleiro” (Rm
9:21), de ser conduzido em “triunfo” (2 Co 2:14). Ele compara o “tabernáculo
terrestre” desta vida a um edifício de Deus, casa não feita por mãos, eterna,
nos céus” (2 Co 5:1). Ele toma a palavra grega para teatro e,
com audácia, aplica-a aos apóstolos, dizendo: “nos tornamos um espetáculo (teatro) ao
mundo” (1 Co 4:9).
Tais declarações refletem a vida típica da cidade em que
Paulo passou os anos formativos da sua meninice. Assim as vistas e os sons
deste azafamado porto marítimo formam um pano de fundo em face do qual a vida e
o pensamento de Paulo se tornaram mais compreensíveis. Não é de admirar que ele
se referisse a Tarso como “cidade não insignificante”.
Os filósofos de Tarso eram quase todos estóicos. As idéias
estóicas, embora essencialmente pagãs, produziram alguns dos mais nobres
pensadores do mundo antigo. Atenodoro de Tarso é um esplêndido exemplo.
Embora Atenodoro tenha morrido no ano 7 d.C., quando Saulo
não passava de um menino pequeno, por muito tempo o seu nome permaneceu como
herói em Tarso. E quase impossível que o jovem Saulo não tivesse ouvido algo a
respeito dele.
Quanto, exatamente, foi o contato que o jovem Saulo teve com
esse mundo da filosofia em Tarso? Não sabemos; ele não no-lo disse. Mas as
marcas da ampla educação e contato com a erudição grega o acompanham quando
homem feito. Ele sabia o suficiente sobre tais questões para pleitear diante de
toda sorte de homens a causa que ele representava. Também estava cônscio dos
perigos das filosofias religiosas especulativas dos gregos. “Cuidado que
ninguém vos venha a enredar com sua filosofia e vãs sutilezas, conforme a
tradição dos homens... e não segundo Cristo”, foi sua advertência à igreja de
Colossos (Cl 2:8).
B) Cidadão Romano.
Paulo não era apenas “cidadão
de uma cidade não insignificante”, mas também cidadão romano. Isso nos dá ainda
outra pista para o fundo histórico de sua meninice.
Em At 22:24-29 vemos Paulo conversando com um centurião
romano e com um tribuno romano.(Centurião era um militar de alta
patente no exército romano com 100 homens sob seu comando; otribuno, neste
caso, seria um comandante militar.) Por ordens do tribuno, o centurião estava
prestes a açoitar Paulo. Mas o Apóstolo protestou: “Ser-vos-á porventura lícito
açoitar um cidadão romano, sem estar condenado?” (At 22:25). O centurião levou
a notícia ao tribuno, que fez mais inquirição. A ele Paulo não só afirmou sua
cidadania romana mas explicou como se tornara tal: “Por direito de nascimento”
(At 22:28). Isso implica que seu pai fora cidadão romano.
Podia-se obter a cidadania romana de vários modos. O
tribuno, ou comandante, desta narrativa, declara haver “comprado” sua cidadania
por “grande soma de dinheiro” (At 22:28). No mais das vezes, porém, a cidadania
era uma recompensa por algum serviço de distinção fora do comum ao Império
Romano, ou era concedida quando um escravo recebia a liberdade.
A cidadania romana era preciosa, pois acarretava direitos e
privilégios especiais como, por exemplo, a isenção de certas formas de castigo.
Um cidadão romano não podia ser açoitado nem crucificado.
Todavia, o relacionamento dos judeus com Roma não era de
todo feliz. Raramente os judeus se tornavam cidadãos romanos. Quase todos os
judeus que alcançaram a cidadania moravam fora da Palestina.
C) De Descendência Judaica.
Devemos, também,
considerar a ascendência judaica de Paulo e o impacto da fé religiosa de sua
família. Ele se descreve aos cristãos de Filipos como “da linhagem de Israel,
da tribo de Benjamim, hebreu de hebreus; quanto à lei, fariseu” (Fp 3:5).
Noutra ocasião ele chamou a si próprio de “israelita da descendência de Abraão,
da tribo de Benjamim” (Rm 11:1).
Dessa forma Paulo pertencia a uma linhagem que remontava ao
pai de seu povo, Abraão. Da tribo de Benjamim saíra o primeiro rei de Israel,
Saul, em consideração ao qual o menino de Tarso fora chamado Saulo.
A escola da sinagoga ajudava os pais judeus a transmitir a
herança religiosa de Israel aos filhos. O menino começava a ler as Escrituras
com apenas cinco anos de idade. Aos dez, estaria estudando a Mishna com suas
interpretações emaranhadas da Lei. Assim, ele se aprofundou na história, nos costumes,
nas Escrituras e na língua do seu povo. O vocabulário posterior de Paulo era
fortemente colorido pela linguagem da Septuaginta, a Bíblia dos judeus
helenistas.
Dentre os principais “partidos” dos judeus, os fariseus eram
os mais estritos (veja o capítulo 5, “Os Judeus nos Tempos do Novo
Testamento”). Estavam decididos a resistir aos esforços de seus conquistadores
romanos de impor-lhes novas crenças e novos estilos de vida. No primeiro século
eles se haviam tornado a “aristocracia espiritual” de seu povo. Paulo era
fariseu, “filho de fariseus” (At 23.6). Podemos estar certos, pois, de que seu
preparo religioso tinha raízes na lealdade aos regulamentos da Lei, conforme a
interpretavam os rabinos. Aos treze anos ele devia assumir responsabilidade pessoal
pela obediência a essa Lei.
Saulo de Tarso passou em Jerusalém sua virilidade “aos pés
de Gamaliel”, onde foi instruído “segundo a exatidão da lei. . .“ (At 22:3).
Gamaliel era neto de Hillel, um dos maiores rabinos judeus. A escola de Hilel
era a mais liberal das duas principais escolas de pensamento entre os fariseus.
Em Atos 5:33-39 temos um vislumbre de Gamaliel, descrito como “acatado por todo
o povo.”
Exigia-se dos estudantes rabínicos que aprendessem um ofício
de sorte que pudessem, mais tarde, ensinar sem tornar-se um ônus para o povo.
Paulo escolheu uma indústria típica de Tarso, fabricar tendas de tecido de pêlo
de cabra. Sua perícia nessa profissão proporcionou-lhe mais tarde um grande
incremento em sua obra missionária.
Após completar seus estudos com Gamaliel, esse jovem fariseu
provavelmente voltou para sua casa em Tarso onde passou alguns anos. Não temos
evidência de que ele se tenha encontrado com Jesus ou que o tivesse conhecido
durante o ministério do Mestre na terra.
Da pena do próprio Paulo bem como do livro de Atos vem-nos a
informação de que depois ele voltou a Jerusalém e dedicou suas energias à
perseguição dos judeus que seguiam os ensinamentos de Jesus de Nazaré. Paulo
nunca pôde perdoar-se pelo ódio e pela violência que caracterizaram sua vida
durante esses anos. “Porque eu sou o menor dos apóstolos”, escreveu ele mais
tarde, “. . . pois persegui a igreja de Deus” (1 Co 15:9). Em outras passagens
ele se denomina “perseguidor da igreja” (Fp 3:6), “como sobremaneira perseguia
eu a igreja de Deus e a devastava” (Gl 1:13).
Uma referência autobiográfica na primeira carta de Paulo a
Timóteo jorra alguma luz sobre a questão de como um homem de consciência tão
sensível pudesse participar dessa violência contra o seu próprio povo. “. . .
noutro tempo era blasfemo e perseguidor e insolente. Mas obtive misericórdia,
pois o fiz na ignorância, na incredulidade” (1 Tm 1:13). A história da religião
está repleta de exemplos de outros que cometeram o mesmo erro. No mesmo trecho,
Paulo refere a si próprio como “o principal” dos pecadores” (1 T 1:15), sem
dúvida alguma por ter ele perseguido a Cristo e seus seguidores.
D) A Morte de Estevão.
Não fora pelo modo como
Estevão morreu (At 7:54-60), o jovem Saulo podia ter deixado a cena do
apedrejamento sem comoção alguma, ele que havia tomado conta das vestes dos
apedrejadores. Teria parecido apenas outra execução legal.
Mas quando Estevão se ajoelhou e as pedras martirizantes
choveram sobre sua cabeça indefensa, ele deu testemunho da visão de Cristo na
glória, e orou: “Senhor, não lhes imputes este pecado” (Atos 7:60).
Embora essa crise tenha lançado Paulo em sua carreira como
caçador de hereges, é natural supor que as palavras de Estevão tenham
permanecido com ele de sorte que ele se tornou “caçado” também —caçado pela
consciência.
E) Uma Carreira de Perseguição.
Os eventos que se
seguiram ao martírio de Estevão não são agradáveis de ler. A história é narrada
num só fôlego: “Saulo, porém, assolava a igreja, entrando pelas casas e,
arrastando homens e mulheres, encerrava-os no cárcere” (Atos 8:3).
A Conversão:
A perseguição em Jerusalém na realidade espalhou a semente
da fé. Os crentes se dispersaram e em breve a nova fé estava sendo pregada por
toda a parte (cf. Atos 8:4). “Respirando ainda ameaças e morte contra os
discípulos do Senhor” (Atos 9:1), Saulo resolveu que já era tempo de levar a
campanha a algumas das “cidades estrangeiras” nas quais se abrigaram os
discípulos dispersos. O comprido braço do Sinédrio podia alcançar a mais
longínqua sinagoga do império em questões de religião. Nesse tempo, os seguidores
de Cristo ainda eram considerados como seita herética.
Assim, Saulo partiu para Damasco, cerca de 240 km distante,
provido de credenciais que lhe dariam autoridade para, encontrando os “que eram
do caminho, assim homens como mulheres, os levasse presos para Jerusalém” (Atos
9:2).
Que é que se passava na mente de Saulo durante a viagem, dia
após dia, no pó da estrada e sob o calor escaldante do sol? A auto-revelação
intensamente pessoal de Romanos 7:7-13 pode dar-nos uma pista. Vemos aqui a
luta de um homem consciencioso para encontrar paz mediante a observância de
todas as pormenorizadas ramificações da Lei.
Isso o libertou? A resposta de Paulo, baseada em sua
experiência, foi negativa. Pelo contrário, tornou-se um peso e uma tensão
intoleráveis. A influência do ambiente helertístico de Tarso não deve ser
menosprezada ao tentarmos encontrar o motivo da frustração interior de Saulo.
Depois de seu retorno a Jerusalém, ele deve ter achado irritante o rígido
farisaísmo, muito embora professasse aceitá-lo de todo o coração. Ele havia
respirado ar mais livre durante a maior parte de sua vida, e não poderia
renunciar à liberdade a que estava acostumado.
Contudo, era de natureza espiritual o motivo mais profundo
de sua tristeza. Ele tentara guardar a Lei, mas descobrira que não poderia
fazê-lo em virtude de sua natureza pecaminosa decaída. De que modo, pois,
poderia ele ser reto para com Deus?
Com Damasco à vista, aconteceu uma coisa momentosa. Num
lampejo cegante, Paulo se viu despido de todo o orgulho e presunção, como
perseguidor do Messias de Deus e do seu povo. Estevão estivera certo, e ele
errado. Em face do Cristo vivo, Saulo capitulou. Ele ouviu uma voz que dizia:
“Eu sou Jesus, a quem tu persegues;. . . levanta-te, e entra na cidade, onde te
dirão o que te convém fazer” (At 9:5-6). E Saulo obedeceu.
Durante sua estada na cidade, “Esteve três dias sem ver, durante os quais nada comeu nem bebeu”
(Atos 9:9). Um discípulo residente em Damasco, por nome Ananias,
tornou-se amigo e conselheiro,um homem que não teve receio de crer que a conversão de
Paulo’ fora autêntica. Mediante as oraçõesde Ananias, Deus restaurou
a vista a Paulo.
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