Rompendo com a civilização da sua
época, houve homens e mulheres que se retiraram para o deserto ou lugares
solitários, para aí se entregarem plenamente a DEUS. Estamos a falar dos anos
300 d.c.

Claro está que, com a aglomeração
de todos estes homens que, necessitados de solidão e de silêncio para se
dedicarem a Deus, foram impelidos para o deserto, foi necessário em primeiro
lugar, encontrar ritmos de vida que conciliassem as exigências de uma vida ao
‘lado’ uns dos outros no deserto, com as suas peculiares exigências de solidão.
O ritmo de vida mais comumente
adoptado consistia em passar a semana inteira em seu ermitério (cela separada)
e na noite de sábado para domingo encontrarem-se na Igreja ou nas dependências
dela para, em conjunto, cantarem o Ofício nocturno, celebrarem no Domingo a
Eucaristia e fazerem algumas gestões necessárias, como sejam o colóquio
espiritual, alguma ‘palavra de sabedoria’ dado pelo eremita mais sábio (a sabedoria
do espírito) ou simplesmente chamar a atenção para alguma falta.
Cada um dos eremitas devia viver
do seu trabalho manual, NÃO UM TRABALHO QUALQUER, mas um trabalho que fosse
compatível com o deserto e com as exigências da oração contínua e do recolhimento.
Este trabalho consistia no fabrico manual de cestos, cordas e esteiras que o
‘guardião’ da Comunidade de eremitas era encarregado de vender para obter, em
troca, alimentos.
Foram estes bem-aventurados
padres, os iniciadores e mestres da vida dos monges. Podemos também apontar
alguns nomes femininos como exemplos pré-monásticos como sejam Stª Tecla, Stª
Macrina- iniciadora da vida eremítica feminina, Stª Synclética, a mais famosa
das ‘Madres do deserto’[3]
Muito mais posteriormente, por
volta do ano 1150 – sabendo que houve sempre eremitas como vocação peculiar e
especial na Igreja – um grupo de homens, depois de haverem participado na
reconquista dos lugares santos, instalaram-se como eremitas , na Palestina,
nomeadamente na Montanha do Carmelo, junto a uma fonte, para se dedicarem
plenamente à contemplação de Deus, como fizeram aqueles 1ºs padres do deserto.
Estes homens pretenderam
inserir-se na tradição monástica oriental mais antiga[4], que se inspirava nos
exemplos do profeta Elias e dos seus discípulos, segundo o testemunho dado por
S. Jerónimo, que viveu também esta excepcional espiritualidade de Elias, na
tradição Monástica oriental. Diz ele: “Nosso modelo é Elias, modelo é Eliseo,
nossos guias aqueles filhos dos profetas”
Estes nossos 1ºs irmãos eremitas
do monte Carmelo, no início, contentaram-se apenas com um conjunto de
prescrições tomadas dessa grande tradição monástica oriental. Contudo, por
volta do ano 1209, amadurecidos e experimentados na vida solitária, pediram ao
então Patriarca de Jerusalém Stº Alberto de Av. uma norma ou uma regra de vida
concreta para eles, salvaguardando sempre o peculiar da vida solitária com a
sua oração contínua.
A Regra recebida do Patriarca de
Jerusalém, codifica um género de vida em activo, de carácter estritamente
eremítico e contemplativo. a) A Espiritualidade do deserto ou da vida solitária
O fim da vida solitária, ou
eremítica ou de deserto que tudo significa praticamente o mesmo, é CONTEMPLAR,
pura e constantemente a Deus; é AMAR fervorosamente e sem desânimo a Deus. Esta
é a OCUPAÇÃO PRINCIPAL daquele que é chamado à vida solitária: dedicar-se,
unir-se, gozar e abraçar perfeita e assiduamente a Deus, fazendo-se pouco a
pouco uma só ‘coisa’ com Ele.
Os primeiros padres do deserto,
assim como todos os eremitas e anacoretas posteriores[5], abandonaram os
lugares habitados para, no silêncio e em solidão, se entregarem ASSIDUAMENTE e
CADA VEZ MAIS INTENSAMENTE a Deus, evitando por meio da solidão distracções que
prejudicassem essa união com Deus, manifestada na oração contínua. A ORAÇÃO
CONTÍNUA É A MARCA DO EREMITISMO.
O ‘DESERTO’, O ‘ERMO’, O ‘ESPAÇO
DESABITADO’ é muito mais do que um lugar de retiro, já que, pela sua extensão
ou configuração, e pela sua ‘aspereza’ ou ‘austeridade’, tem VALORES PRÓPRIOS.
Todos esses ‘lugares’ levam em
si, o sinal da pobreza, da austera beleza que aponta a simplicidade mais
absoluta, tornando-se num sinal da total impotência do homem, que descobre a
sua fragilidade porque não pode subsistir sozinho no deserto, daí que ele se
veja obrigado a procurar a sua única força somente em Deus.
Permanecer nestes lugares é como
uma tentativa de AVANÇO, mas despido, desprendido de todo o apoio humano, na
carência de todo o sustento egocêntrico e incluso espiritual (as noites), para
encontrar DEUS. O homem necessita, aqui, de muita determinação.
Os dias no deserto são um ensaio,
uma tentativa cheia de confiança para pedir a Deus que nos venha buscar, na
nossa impotência, para levar-nos a Ele.
O deserto implica necessariamente
o desprendimento total. O homem só permanece no deserto para se tornar
totalmente ‘presa’ de Deus, de contrário, a sua vida corre o perigo de se
afundar no vazio.
O deserto leva consigo a ruptura
com o próprio habitat: deixa-se o mundo das relações sociais e das comodidades
para encontrar-se sozinho num ambiente ‘despido’ onde se privilegia a união com
DEUS. Quem é chamado ao ‘deserto’ não só deve pacificar o seu espírito apagando
os desejos inúteis e o lamento da ‘escravidão’, mas erigir o ABSOLUTO DE DEUS,
relativizando os outros valores e rejeitando os ídolos.
Daí que, o ‘deserto’ seja um
período (lugar) de prova e de tentação, a fim de desocupar o coração humano dos
ídolos, e poder experimentar, que SÓ DEUS CONTA: Ele é o Absoluto, é o Senhor
da VIDA, o DADOR da salvação anelada, pedida, implorada, desejada…
É necessário pois, que Deus ponha
esse coração em situações difíceis, de ‘morte’, a fim de que se manifestem as
intenções do homem, este as conheça e se submeta ao tratamento purificador da
Bondade infinita e então Deus converte-se em maná que nutre, em água viva que
tira a sede.. converte-se em Cristo que salva…
Este absoluto, que é Deus,
manifesta-se como AMOR que atrai a SI, numa comunhão íntima, singular, e como
ALIANÇA ETERNA. O DESERTO, portanto, converte-se num tempo de REVELAÇÃO DE DEUS
e de REVELAÇÃO DO HOMEM, de renovação da aliança e da restauração da
santidade.[6]b) Atitude de quem é chamado ao ‘deserto’
Quem vai ao deserto para nele
perseverar, vai pela SEDE DE ESTAR CARA A CARA COM DEUS. Foi esta a atitude –
que é a única válida – de Jesus quando se retirava discretamente para os
lugares solitários. Este desejo de intimidade com Deus é o único móbil que deve
levar o homem à solidão do ermo, a retirar-se da barafunda da vida e das mil e
uma distracções que o impediriam de realizar este anseio fundo que a sua
própria vocação lhe proporciona. Assim procederam tanto os anacoretas
verdadeiros do deserto nos seus primórdios, como todos os outros posteriores
até aos nossos contemporâneos (ex: Charles de F.)
O deserto, situação e lugar
privilegiado, põe o homem frente a si mesmo. Privado de todos os seus hábitos
de vida, das suas forças e potências, que se faziam valer na vida social, é
impulsionado fortemente a enfrentar-se com a Presença de Deus no maior
despojamento possível, e somente o desejo da intimidade com Deus é que lhe vai
suster nesta luta entre o seu nada e o Absoluto de Deus. Todo o homem que
penetra no deserto, melhor dito, que se deixa penetrar no deserto e ser
purificado no fogo divino, alcançará a pureza de coração…só assim poderá ‘ver’
a Deus.
Sintetizando: o Único motivo que
deve animar a nossa procura de solidão e silêncio é DEUS, É ALCANÇAR A
INTIMIDADE COM DEUS.
Todos os primeiros eremitas do
Monte Carmelo, tiveram esta excelente experiência de solidão, como procura
incessante de Deus. Como já foi dito, nos seus primórdios, estes nossos irmãos
contentaram-se com umas reduzidas prescrições que orientaram a sua vida
solitária – como aconteceu aos 1ºs padres do deserto quando depararam com
abundantes discípulos. Claro está que, com a aglomeração de discípulos, havia
que estabelecer-se normas concretas para defender o silêncio e a solidão que
cada um procurou, quando deixou tudo e abraçou o eremitismo.
Esta vida solitária amadureceu
levando-os a pedir ao Patriarca de Jerusalém Stº Alberto, que lhes desse uma
regra de vida, respeitando quanto possível a vida eremítica e a oração
contínua, que vinham experimentando havia anos.
Stº Alberto, ao dar-lhes uma
regra de vida, tendo em conta o seu modo de viver, juntou-lhes 2 elementos, a
saber: o oratório e o refeitório (rezar em comum e comer em comum) e pô-los sob
a obediência de um superior, E ISTO PORQUÊ?
Modalidades de eremitismo
O anacoretismo
Como diz o Ecl IV,5 “ai daquele
que está só, que, se cai, não tem quem o levante”. De facto S. Jerónimo já
dizia : “no deserto, muito facilmente nasce a soberba, pela liberdade que
existe em agir segundo o próprio parecer”
Só os homens e mulheres muito
acrisolados na virtude e na vida do espírito é que podiam permanecer no deserto
sem sucumbirem; é o caso dos chamados “padres ou madres do deserto”. Uma delas,
a “Amma Sara” dizia de si mesma quando um dos anciãos, também anacoreta, foi
ter com ela para a humilhar : “pela natureza sou mulher, mas não no
espírito…”[7]. Foi destes homens e mulheres fortes na fé e no discernimento,
possuídos pelo Espírito Santo, que Stº Agostinho dizia: “Os que moram no
deserto gozam dos divinos colóquios de Deus, a Quem se entregaram com pureza de
alma; devem jejuar boas temporadas a pão e água”.
Esta vida eremítica completamente
isolada nos seus primórdios, constitui a 1ª modalidade, pois foi a 1ª forma
aparecida nos desertos, montanhas ou lugares solitários junto dos rios. A estes
eremitas chamam-se ‘anacoretas’.
O Eremitismo sob Obediência
Contudo, a partir desta 1ª
modalidade, surgiu mais tarde o eremitismo que se professa debaixo da
obediência, pois a experiência anacorética[8] foi mostrando quantos erros se
pode cometer quando o eremita não está “sujeito” à obediência. S.Jerónimo,
destes que vivem sujeitos diz :”Não poderão fazer o que querem, mas aquilo que
se lhes mande; terão unicamente aquilo que se lhes der… e assim conseguirão
servir e amar a Deus com filial amor..”
Nesta 2ª modalidade, o eremita,
logo à partida, pode não possuir essa tal virtude acrisolada que se exige para
o anacoretismo, mas recebe a aprendizagem que a “obediência” lhe proporciona
para poder entrar na solidão, no silêncio e na oração contínua, orientado
apenas pela Vontade de Deus. O eremitismo vivido sob a obediência impede o
homem de extraviar-se pelo labirinto do orgulho, da vaidade e dos caprichos da
sensibilidade; ajuda-o a sair vitorioso na luta contra o “inimigo de Cristo”
como dizia uma das madres do deserto referindo-se ao mau espírito, e contra si
próprio, já que esta, é a guerra mais tenaz e encarniçada que o eremita tem que
travar. Só a obediência lhe pode conferir a certeza moral de caminhar sob a
Vontade de Deus, a única que o purifica, a única que o salva.
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