RELATO DE UM JOVEM, ESTUDANTE
DE DIREITO, QUE CONTA-NOS SUAS
IMPRESSÕES DO SEU CONTATO COM
UM DESERTO CARTUSIANO
A razão de uma feliz realidade
e sem-razão de falsas lendas.
O IX centenário da ordem
cartusiana.
Um monumento vivo para o
Brasil.
Conversa com um cartuxo vivo.
Fala um cartuxo morto.
CURIOSIDADE?
Os rapazes – e não digo nada das
moças – somos atrevidos e curiosos. Eu tinha curiosidade por
conhecer uma CARTUXA “por
dentro”. Esta ideia vinha pulando na minha cabeça desde há certo
tempo. O desejo de conhecer o
desconhecido e desvendar certos véus atrai de modo especial. Algo
assim como provar do fruto
proibido. Compreendo facilmente a atitude dos nossos primeiros pais no
Paraíso... Só que, comer do fruto
proibido foi relativamente fácil – só estender a mão –; mas não era
tão fácil visitar uma Cartuxa,
entrar nela e permanecer em contato com seus monges dois dias e
conhecer de perto a sua
misteriosa vida.
Porque, decididamente, eu queria,
não só visitar, como também ver e conhecer a fundo, viver a
mesma vida, embora fosse só por
48 horas. Mas, como fazer?... E pensando e dando voltas ao assunto,
que tão escuro se apresentava,
brilhou uma luz; encontrei uma “saída”, que seria para mim uma
possível “entrada”.
O meu pai tinha-me falado com
frequência dum amigo íntimo da sua juventude que, concluídos
os estudos universitários, optou
pela Cartuxa e lá vivia. Então, como “filho do meu pai” escrevi ao Pe.
Prior alegando essa amizade.
Falei também com Pe. Procurador, a quem encontrei um dia na cidade,
para que ele interpusesse os seus
bons serviços e me procurasse a licença para a almejada visita-estadia.
Desnecessário é dizer que fiquei
como criança com sapatos novos, quando obtive a licença. Por fim,
poderia ver com meus próprios
olhos a vida desses homens que, abandonando todos os bens deste
mundo nosso e a nossa sociedade
de consumo, tão experta em criar e inventar confortos, isolam-se da
nossa civilização para se
ocuparem com Deus e rezar, precisamente, pelos que nos encontramos
aprisionados, atormentados e
amedrontados por essa mesma civilização; desses homens que deixaram
para trás todo o conforto
corporal e prazenteiro, para se imolar pelos seus semelhantes que nem podem,
nem sabem, nem querem renunciar a
nada de prazer. Os mesmos que, quando ouvem falar da Cartuxa,
dizem: “Loucura!” Eu, porém,
penso e digo: “Cordura!” “Bela e santa vida!” E compreendi como tinha
razão aquele autor que chamou a
Cartuxa: “O paraíso branco - Le Paradis blanc”.
FÁBULAS E LENDAS
Ouvi falar muito da Cartuxa e
escutei – como não! –, as fábulas e lendas sobre a vida cartusiana;
esses estúpidos tópicos de que os
cartuxos não falam nunca; que não comem; que se cumprimentam
com um lúgubre: “Temos de
morrer!”, li; ou então, aquele macabro que no-los pintam como cavando
cada dia um pouco a terra onde
deverão ser sepultados... É a imaginação humana e mundana, junto
com a mentira, que pretende
explicar o ignorado e incompreensível criando uma vida fantasmagórica
de inaudita rigidez e inumana
austeridade, de gosto fúnebre. E o pior é que, mesmo no nosso século da
“informação”, aparecem, de quando
em quando, esses relatos e outros não menos fantásticos em
revistas e jornais, cujos autores
demonstram não saber nada dessa vida misteriosa, porque jamais se
tomaram o incômodo de examinar a
verdade para desmentir, com ela, todas essas fantasiosas lendas. É
o que cantara um poeta cartuxo do
século XVII que, sem pensar nisso, aparece agora entre os poetas
espanhóis:
“O louco pensamento
que, na mais doce vida,
finges maior tormento
e tens por feliz a mais
perdida;
imaginando ser este céu,
prisão,
e o sumo gozo, desconsolação”.
(Dom Miguel de Dicastillo,
“Silvas a Aula Dei”).
Eu, depois de ter vivido 48 horas
na Cartuxa, posso dizer que nada de anormal ou estranho vi na
vida dos cartuxos. Pelo
contrário, saí do mosteiro admirando os seus moradores e a vida que levam.
Uma vida cuja primordial ocupação
consiste em viverem para Deus e em desejar e rezar para que a
felicidade que eles vivem ao
máximo em contato com Deus, seja a felicidade de todos os homens.
Nenhuma outra preocupação pôde
notar no seu espírito. A sua vida discorre sem as pressas da nossa;
sem as nossas inquietações e
disputas; não é essa marcha contra o relógio que todos nós, infelizmente,
temos de viver de bom ou de mal
grado. A sua, é uma vida calma, tranquila, pacífica ou, como a
chamamos “contemplativa”. Talvez,
porque para contemplar seja preciso uma paz e tranquilidade de
espírito que nós não temos.
O horário dessa vida marca um
ritmo ordenado e monótono que, para nós, imersos em velocidades
supersônicas, nos parece
insuportável. Mas, é claro, o horário é para os cartuxos e não para nós; para
eles que vivem em paz; que,
deixando o nosso mundo materialista e egoísta, colocam seus pensamentos
e desejos acima da terra, além
das nuvens, superando, mesmo, as mais distantes das nossas estrelas, lá,
onde dizemos, se encontra o
Criador de tudo.
ADVERTÊNCIA
Eu não pretendo – advirto-o desde
já – fazer uma documentada reportagem sobre a Cartuxa.
Ninguém, portanto, fique
desiludido se, após a leitura destas “impressões”, não encontrar nelas os
detalhes que esperava, nem os
dados curiosos que não faltam em apurados artigos, nem, enfim, os
“maravilhosos” relatos que os
periodicistas sabem “inventar”. Não é esse o meu propósito.
Se tudo começou com o desejo de
conhecer por “dentro” um mosteiro cartusiano, agora tudo finda
recolhendo nestas páginas as
impressões que recebi nestes dois dias de contato imediato e vivo com a
vida dos monges cartuxos. Darei a
conhecer o que aqui fora é desconhecido da maior parte do público.
Portanto, me não deterei em
detalhes históricos ou artísticos, salvo os imprescindíveis e que vão
deixando a sua impressão no meu
espírito.
Aliás, sobre a Cartuxa, ilustres
escritores deixaram-nos páginas maravilhosas e numerosas belezas
literárias; mas, o confesso, não
quis ler nada antes de fazer a minha “experiência” no deserto cartusiano,
para não ficar influenciado por
ninguém. Desejo que seja uma coisa absolutamente pessoal; uma
lembrança dos meus 20 anos; uma
autêntica visão de uma vida oculta e real versão das minhas
“impressões”. Numa palavra, quis
ver como um rapaz de 20 anos é capaz de contar aos seus colegas os
sentimentos suscitados pela vida
cartusiana; uma vida que, infelizmente, não oferece a todos a
possibilidade de contemplar de
perto a sua realidade, penetrar na sua essência e indagar o seu segredo.
Reconheço que será, da minha
parte, uma pretensão juvenil; mas, de “pretensões” vive toda a gente.
Mais ainda, essa pretensão minha
ficou mais acentuada quando fiquei sabendo que neste ano celebra a
Ordem Cartusiana o IX Centenário
da sua fundação. Nada mais e nada menos que 900 anos de vida!
EM MARCHA
Saí da minha cidade de
manhãzinha, pois queria aproveitar ao máximo os dois dias que me
concediam para a minha aventura
monástica. O mosteiro não ficava longe demais. Apanhei um táxi que,
em 30 minutos, me deixava à
porta.
O cenóbio está situado num lugar
solitário e ameno, rodeado de hortas e terras de cultivo. Afastado
uns 500 metros duma estrada secundária.
Depois vim a saber que a Ordem não tem mosteiros urbanos,
antes escolhe lugares desertos e
prudentemente afastados das cidades, como mais indicados para viver o
ideal monástico-contempletivo da
sua vocação. Este mosteiro levanta-se sobre um pequeno vale,
envolvido no silêncio. Um esbelto
e lindo campanário domina tudo. Parece que vigia a entrada dos
profanos no seu sagrado recinto.
Tudo é calma, paz, silêncio. Só, de quando em quando, o ruído
estridente, que aqui se torna
mais incômodo e inoportuno, de algum carro pela estrada principal. Dirse-
ia que protesta contra o “luxo”
deste silêncio e contra o sonoro e pausado tanger do sino monacal,
que convida ao silêncio e à
oração.
O ar da manhã é fresco e puro,
desconhecido nas nossas poluídas cidades. O sol primaveril, cuja luz
nos invade, apresenta-se como
dono absoluto deste dia que começa. Contemplo as acácias e olaias em
flor, cujo branco e roxo fazem-me
lembrar a pureza e penitência dos moradores deste “mundo”
desconhecido em que pretendo
entrar. À mão direita há um grande campo de roseiras em flor. Intrigame
esta quantidade de rosas. Para
que serão? A flora da primavera está a abrir-se à luz do sol. Penso
que é bom começar com luz por
fora e... com ilusão por dentro. Este silêncio e solidão, que apagam os
ecos do mundanal ruído, despertam
na minha alma anelos de paz e quietude. Ao final, estes dias que
me esperam acho que vão ser uma
distensão para o meu espírito, farto das leis e princípios do Direito
que venho estudando.
UM “ANJO” CARTUXO
Encaminho-me ao portão. Puxo de
uma corrente, com mão de madeira,
que faz ouvir de imediato os
argentinos lamentos dum pequeno sino. Ruídos
de passos e de chaves. Correr de
ferrolhos. Abre-se o postigo e encontro-me
face a face com o primeiro
cartuxo da minha “experiência”. E, enquanto
fazemos a nossa apresentação,
penso instintivamente: “Lástima que minhas
mãos nunca fizeram amizade com os
pincéis”. É que a figura que contemplo
dava motivo e matéria para uma
linda tela de Zurbarán.
O meu monge aparenta andar pela
casa dos 70 anos. Veste todo de branco
e, dir-se-ia que, para não
desentoar, até a barba vai já optando pelo branco,
dominando o cinzento. Tem olhos
azuis e através deles e do seu franco sorriso,
parece que uma alma limpa e sem
malícia deseja escapar. Tenho a sensação de
estar em contato com a
simplicidade, caridade e atenção. Talvez porque no
nosso mundo não abundam muito. E
sem querer, veem à minha mente aquelas palavras de Jesus: “Este
é um verdadeiro israelita, no
qual não há falsidade” (Jo 1,47).
Na sua apresentação, diz-me que
se chama frei Ângelo Maria, ou simplesmente Ângelo. (Será por
isso que o colocaram na Portaria
do mosteiro?). Digo-lhe: “Os Anjos são muito bons!” Responde: “Os
do Céu!”. Insisto: “Acho que
também os que andam pela terra. Ou então, pensa que não é bom o meu
Anjo Custódio que me trouxe até
cá...?” Sorri. Conduz-me a uma pequena hospedaria interior reservada
aos familiares dos monges, quando
vêm visitá-los. Vai avisar ao Pe. Prior. Eu fico pensando: Se todos
os cartuxos são como este, tive
sorte. Inclusive dava vontade de ser cartuxo como ele...
Em breve aparecem os padres Prior
e Procurador. Cumprimentamo-nos. O Pe. Prior é o Superior e
“pai” da família monástica
cartusiana, onde não existe o Abade. Incumbe-lhe o governo de todo o
mosteiro, no espiritual e
material. Para o relacionado com este último, serve-se da ajuda do Pe.
Procurador, a quem eu já conhecia
por tê-lo visto na cidade; é que ele é o único monge encarregado de
resolver os assuntos materiais e
burocráticos do mosteiro. Exponho-lhes, agora de palavra, os meus
intentos e desejos. Aceitam-nos e
prometem-me a sua ajuda na realização dos mesmos. “Pelo menos,
diz o Pe. Procurador, para que
não aumente o número das lendas e fábulas sobre a Cartuxa...”.
SÃO BRUNO. O FUNDADOR
Disse acima que a minha
curiosidade pela Ordem Cartusiana ficou “aumentada”, pela notícia de
celebrar-se neste ano o IX
Centenário da sua fundação: 1084-1984. Este acontecimento obriga-me a
deixar constância da minha
impressão sobre o Fundador: São Bruno.
São Bruno viu-se feito “fundador”
sem nunca ter pensado nisso nem desejado sê-lo. Os
acontecimentos, ou melhor, a
Providência guiou seus passos e dispôs todas as coisas para que se desse
tal evento. E assim, dum grupo de
sete homens, “buscadores de Deus”, que nada queriam nem
pretendiam senão um lugar deserto
e oculto para encontrá-Lo, amar e servir, nasceu a Ordem
Cartusiana. A família monástica
de São Bruno.
Passaram nove séculos, e continua
ainda no mundo aquela procura e experiência de Deus iniciada e
guiada por Bruno. E na nossa
época, em que o ateísmo, a distância ou o eclipse de Deus reinam em
muitas, os filhos da Cartuxa
continuam vivendo aquela radical entrega e absoluta dedicação
contemplativa, profunda e
entusiasta, ao Senhor de todos. Enamorados de Deus, tudo cede ao fascínio
do divino. E quando ouvimos falar
alguns insensatos da “morte de Deus”, encontramo-nos com uns
homens que colocam em Deus a
razão suprema da sua vida e o alvo de todas as suas aspirações. Numa
vida que poderíamos chamar de “sublime
monotonia”, todo o seu ser gravita para esse centro: Deus
procurado, possuído e amado acima
de tudo. A monotonia converte-se em divina unidade e para ela
convergem todas as energias. Foi
o que São Bruno ensinou aos seus filhos. Sem pensar, tornou-se
“fundador” de uma Ordem
contemplativa.
Procurei nestes dias conhecer um
pouco a alma de São Bruno. Árdua tarefa. Porque o mais
importante dos santos, não as
série de anedotas que deles se contam; senão a sua vida interior; não as
obras externas que realizaram,
senão o espírito que impulsionava tais obras.
São Bruno deveu ser um homem
encantador. Dizem que, “enamorado de Deus, foi cativado por
Deus”. Será por isso que uma
extraordinária bondade envolve serenamente toda a sua existência, até
fazer dela a nota característica
do seu espírito, o reflexo da sua alma e a norma do seu proceder. A
bondade de Deus será o atributo
divino que mais intensamente penetrará seu coração. E é dessa
bondade que nasce a harmonia
interior que se reflete na serenidade exterior, no domínio de si mesmo,
na paz, e tranquilidade, mesmo no
meio das agitações e acontecimentos da sua existência. No meio das
perturbações e desordens da sua
época, permanece firmemente enamorado de Deus, porque homem de
fé e de “coração profundo”1. E
porque unido a Deus, pode e sabe difundir o amor divino nos corações
dos seus amigos, e conquistá-los
para Deus, e impulsioná-los para a entrega, e ajudá-los como pai no
caminho empreendido.
É interessante a força de atração
desse homem, quer na primeira Cartuxa, entre os gelos dos
inóspitos Alpes do Delfinado,
quer na segunda, nos amenos bosques e vales da Calábria. Entrou na
primeira “pela festa de S. João
Batista”, e virá a morrer na segunda, aos seis de outubro de 1101. Em
ambos os mosteiros, as almas vão
junto dele, apesar de que ele não saía do seu deserto, para viverem
para Deus com a mesma forma e
integridade de vida.
Carinho desbordante, bondade,
amabilidade, uma grande simpatia, são as qualidades que nos
contam os testemunhos daqueles
que conviveram com ele. E quando querem indicar a origem da sua
força irresistível e triunfante
sobre os corações amigos, não duvidam em colocá-la na bondade do seu
coração, “manso como um
cordeirinho”, “carinhoso como uma mãe”, “forte como um pai”2. Essa
bondade, repetimos, torna-se
reflexo da sua alma unida a Deus; límpida pela sinceridade com que se
1 N. T.: Esta descrição é própria
de Dom Guigo (1083-1136), o quinto sucessor em Chartreuse, que na sua vida de
Santo Hugo de
Grenoble, escreve assim de nosso
fundador:
“Mestre Bruno, homem conhecido já
pela sua seriedade e pela sua ciência, pela sua piedade e pela sua virtude, a
ponto de
oferecer um verdadeiro modelo de
maturidade de espírito... (foi um) homem de coração profundo”
Cf. Vita S. Hugonis, PL
153, 770. Cf. La Grande Chartreuse par un Chartreux. 17ª edição, pág.
21. G. Ch. 1998.
2 N. T.: O autor destas linhas
refere-se aqui a um famoso elogio do Santo feito pelos seus companheiros de
Calábria não mais
falecer, o qual diz assim:
“Bruno mereceu o louvor por
muitas coisas, mas, sobretudo, em uma: Foi um homem de vida equilibrada,
notável nisto.
Sempre de rosto alegre, e a
palavra modesta. Juntava à autoridade de um pai a ternura de uma mãe. Jamais
foi encontrado
altaneiro, mas, qual manso
cordeiro. Foi nesta vida, o verdadeiro israelita”.
Cf.: UN CARTUJO. San Bruno.
Biografia y carisma (1030-1101). Pág. 269. BAC. 614. Madrid, 2001.
abre aos filhos; constante no
propósito de ajudá-los e guiar na procura de Deus; alegre e jubilosa pelos
progressos que contempla neles.
Enfim, um coração onde tem entrada tudo o que é bom e útil, o
humano e o divino e que, por
viver em Deus e para Deus, sabe cantar lindamente tanto as maravilhas
da vida contemplativa que vivem
seus filhos, como as belezas naturais das paragens em que essas
maravilhas têm lugar.
A árvore vive das suas raízes.
Bruno estava enraizado em Deus: “Dizia que para isto tinha
abandonado a casa paterna e tudo:
para servir livremente a Deus”. E não cabe dúvida, a árvore da
família cartusiana funde a sua
raiz mais vital na vida e no exemplo do seu Fundador. Um fundador que
nunca pensou em ser fundador. E
tanto é assim, que não foi ele quem escreveu as regras dos cartuxos.
Os caminhos de Deus!
O MOSTEIRO
A forma de qualquer Cartuxa
apresenta, geralmente, a figura dum grande quadrilátero retangular.
Encontramos nele uma igreja, ou
capela maior, para os serviços conventuais dos solitários. Junto dela
estão os claustros onde se
encontram as celas dos monges; estas se estendem ao redor da igreja. O
centro do claustro está formado
por uma horta e dentro desta, entre ciprestes e árvores, o cemitério.
Perto da igreja estão as outras
dependências conventuais: Sala capitular, Capelas, Refeitório, etc.; e
mais afastadas, para evitar
quanto possível o ruído, as oficinas onde se realizam os trabalhos
materiais do
mosteiro: carpintaria, ferraria,
lavadouro, granjas, vacaria, etc.
Em linhas gerais, todos os
mosteiros da Ordem têm, segundo me informaram, as mesmas
dependências e forma,
imprimindo-lhe isso que, poderíamos chamar, “selo cartusiano”, porque
destinado ao modo específico de
viver dos monges cartuxos. Por disposição expressa das regras e desde
os começos da Ordem, todos os
mosteiros devem ser construídos em lugares solitários e razoavelmente
afastados dos grandes centros
urbanos. Daí que precisam, para viver, um mínimo de todo o necessário
para não se verem os monges
forçados a sair constantemente do mosteiro. Contam que o primeiro
legislador dizia: “Temos horror
ao hábito de andar pelo mundo a pedir esmola” (Estatutos Cartusianos
29.5). “Bastar-nos-ão uns
recursos modestos, com o auxilio de Deus [...] crescendo em nós o
desprendimento do mundo e o amor
a Deus, por quem tudo se deve fazer e suportar” (Idem. 29.6). E
acho que nove séculos de vida
ininterrupta estão a demonstrar que a Providência continua a velar pelos
cartuxos. E agora, como sempre,
Deus serve-Se das almas boas que compreendem o valor da
intercessão daqueles que se
consagram totalmente a Deus. Só com Deus pode explicar-se a
permanência multissecular desta
vida.
Claro que uma vida assim não é
para as multidões. Segundo me dizem, neste momento, só há no
mundo 23 mosteiros cartusianos,
cinco dos quais são femininos, sem chegar a 500 monges e monjas.
Na Cartuxa, como nas outras
Ordens monásticas, há monges sacerdotes ou que se preparam para sê-lo,
monges não sacerdotes, embora com
os mesmos votos, direitos e obrigações, e os chamados “donatos”,
que não fazem os votos
monásticos, mas que se ligam à Ordem mediante outras promessas.
Os monges não sacerdotes estão
encarregados de tudo o relacionado com a subsistência e o serviço
material do mosteiro; no entanto,
são também monges contemplativos e membros efetivos da família
monástica. Porque isso é, em
definitivo, o mosteiro cartusiano: Uma família de monges solitários, unida
entranhavelmente pelos laços do
amor de Cristo, pelo vínculo de uma idêntica vocação e pela conquista
dum mesmo ideal contemplativo.
Uma família que nasce de uma convocação divina, de uma
convivência fraterna e dum
compromisso eclesial realizado em comum.
Após estes detalhes explicativos
do lugar em que me encontro, vou começar a descrição da minha
“experiência cartusiana”, quer
dizer, o relato do que vi e experimentei nestes dias vividos na Cartuxa.
Noto que a distribuição do
horário pode variar um pouco segundo as estações do ano; porém, em
síntese é mesma a vida que
discorre atrás deste “muro de silêncio”. O dia começa no mosteiro à meianoite
, ou seja, quando naturalmente
começa o dia solar; assim, quando lá “fora” findamos a nossa
jornada, estes monges brancos
iniciam a sua.
Bom, vamos começar. Só me resta
repetir aqui o que o jornalista Antônio González dizia no início
das suas “Estampas Cartusianas”:
“Leitor, não precisas de mais... Benze-te; guarda silêncio e passa
adiante...” Eu acrescentaria:
“Estás num lugar santo...”
O OFÍCIO NOTURNO
Uns secos golpes na porta do meu
quarto acordam-me do meu sono, já quase profundo. O Irmão
“despertador” diz-me que me vá
preparando. Acendo a luz. Olho para o re1ógio. É zero hora ou,
como dizemos, às 12 da noite. Sem
querer, lembro-me nesses instantes da vida noturna da cidade
começada, precisamente, pelas
mesmas horas em que estes monges iniciam o seu dia monástico. Só 12
km de distância material, mas um
abismo de separação entre o objetivo de ambas... Abro a janela. Sinto
e aspiro o ar fresco e perfumado
do próximo jardim. A meia lua permite ver um céu estrelado; as
estrelas parecem-me aqui mais
belas, mais brilhantes e próximas; formam um marco incomparável para
esta meia-noite cartusiana.
Inclusive, um rouxinol lança ao ar o seu vibrante e suave canto, acordado,
talvez, pela luz da minha janela.
Passam 15 minutos, quando o sino da torre dá o sinal para as Matinas
ressoando no silêncio noturno.
Seguindo as instruções recebidas, saio do quarto. Ruídos de passos e
portas chegam aos meus ouvidos.
Débil iluminação pelos corredores. A luz da minha lanterna observo
vários monges que caminham
gravemente enquanto o sino deixa ouvir as suas lentas e doce badaladas.
Um monge acompanha-me à igreja e
coloca-me no coro. Vejo a profunda inclinação do dorso que
todos fazem diante do Sacrário.
A igreja está quase às escuras.
Pelo ruído dos movimentos penso que cada monge vai-se
acomodando no seu lugar. Umas
pequenas lâmpadas, “estrategicamente” colocadas nas estalas, vão-se
acendendo e iluminam os grandes
livros corais, que os monges vão colocando sobre umas estantes que
há na parte anterior das estalas.
O “Antifonário Noturno” é um
livro enorme que mede quase 70 centímetros [e pesa 12 kg.].
Vejo entrar o Pe. Prior pela
porta lateral; e acontece que me colocam ao seu lado. A um sinal deste,
apagam-se todas as luzes. E
encontro-me no meio do silêncio mais silencioso que jamais experimentei
na minha vida. Um silêncio
incrível, total, que se mistura e confunde de maneira atônita com a
obscuridade mais escura. Não se
ouve um rumor nem um murmúrio nem um esboço de tosse, nem um
suspiro. Profundo recolhimento. É
a preparação. Só lá, diante do altar-mor onde está o Sacrário, brilha
a tênue luz de uma lamparina
indicando a presença real do SENHOR destes monges, desse DONO
cujos louvores vão cantar no
silêncio da noite o Mais um sinal do Pe. Prior e inicia-se o canto das
Matinas...
O CANTO NA NOITE
Fico completamente assombrado! É
que pensava para comigo: Estes pobres monges estarão
mortos de sono, e o que menos
desejarão fazer a estas horas será cantar. Com certeza que vão deixar
essa ocupação aos tubos, do órgão
eu aos foles do harmônio... Foi um mau pensamento. Comprovo
que na Cartuxa não se usa nenhum
instrumento musical. Só têm entrada... as cordas vocais.
Vivo momentos impressionantes. As
vozes destes homens não denotam cansaço ou lassidão; antes,
parece quererem romper com elas o
silêncio, a escuridão e chegar até ao céu, até essas estrelas que se
assomam aos vitrais. São vozes
sonoras, fortes,
vigorosas.
Sinto pelo corpo os arrepios que
produz a
emoção. Intento cantar, mas não
me sai a voz.
As lâmpadas das estalas iluminam
só os livros
colocados diante delas. O resto
da igreja
permanece às escuras. Cantam
vivamente e
alternando os coros. Antífonas,
Salmos,
Responsórios, Leituras...
Impressiona-me o
Glória Patri de cada
salmo: é cantado profundamente inclinados os monges e num movimento mais
amplo e repousado. Dir-se-ia que,
para glorificar a Deus, não têm pressas; que Deus é o Senhor do
tempo; que tomam consciência do
que estão a fazer...
Se não contei mal, são dois
Noturnos, compostos de 6 antífonas, 6 salmos, 4 leituras e 4
responsórios. O terceiro Noturno
só tem uma antífona, 3 cânticos e idêntico número de leituras e
responsórios. As leituras e a
salmodia são em vernáculo. O resto em latim e em gregoriano que,
segundo me informam, conserva a
pureza e simplicidade primitiva, do tempo da fundação da Ordem.
A 12ª leitura pertence ao Pe.
Prior. Como todos os leitores, vai para a estante que ocupa o centro
do coro. A sua voz, apesar dos
anos, conserva ainda potência e um vibrante tom juvenil.
Como coroa das Matinas, canta-se
o “Te Deum”. Nova surpresa para mim: por não sei que força
mágica, as vozes parecem cobrar
novo vigor; renovam-se; dir-se-ia que um “dope” espiritual
comunicou-lhes novas energias
para louvar a Deus: “Te Deum laudamus!”, entoa o Pe. Prior. E dois
rios de vozes vão formulando
esses louvores em competência com os anjos... Dado interessante: notei
que quando um monge erra no
canto, ajoelha-se e beija o genuflexório coral; uma humilde petição de
perdão.
Os Ofícios Noturnos são para os
cartuxos os momentos mais fortes e deliciosos da sua jornada
monástica. Quanto tudo está em
calma silenciosa e mergulhada na quietude da noite; na paz no
recolhimento que proporciona esse
penetrante mutismo e vivo contato com a natureza adormecida, o
monge sente-se mais ágil e seu
espírito mais livre para estar com Deus, para falar com Ele, para Lhe
cantar. E com os cânticos
litúrgicos, que a sua voz matiza com as múltiplas cadências gregorianas,
manifesta-lhe todo o amor, a fé,
a esperança que o anima...
Ao fim das Laudes comove-me este
simpático detalhe: Todos cantam uma Antífona à SS. Virgem e,
a seguir, as Ave-Marias (ou
ângelus da Vigília). Linda lembrança destes homens para a “Mãe de todos os
homens”. Será Ela quem os ensina,
como diz a canção, “a dizer: Amem!”?
Saímos. São as 2h45min quando
todos voltam às celas. Através do tênue resplendor da lua, que
atravessa as janelas do claustro,
vejo passar, encapuzados e recolhidos, estes homens de Deus... Agora,
na cela, no pequeno oratório
pessoal, presidido por um crucifixo, findarão a sua Vigília noturna, a sua
entrevista com Deus. E voltarão a
deitar-se até as 6h45min em que, com o Ofício de Prima, iniciarão a
segunda parte do seu dia.
Um monge acompanha-me até meu
quarto. Como é o tempo do “Grande silêncio”, nada me diz;
sorri e faz-me uma atenciosa
inclinação de cabeça. Quase não tenho ganas de dormir. O vizinho
rouxinol chilrea novamente, não
sei se para me cumprimentar ou para protestar contra a luz inusitada
do meu quarto.
No pequeno genuflexório, encontro
umas páginas datilografadas. Chama-me a atenção um
“Oferecimento da Vigília”. É uma
espécie de oração com que o monge oferece a Deus a Vigília
noturna e todas as obras do dia.
E que homens! Lembram-se de suplicar a Deus por todos: O mundo, a
Igreja, a pátria, a Ordem, a
família, os sacerdotes, missionários, religiosos, parentes, amigos,
benfeitores,
doentes, pecadores, defuntos...,
ninguém fica excluído ou esquecido na sua prece fraternal...
Coloco o despertador para me
acordar às 7h15min, pois não quero perder nada do meu dia
cartusiano. Deito-me. E enquanto
espero que o sono venha a fechar as minhas pálpebras, já cansadas,
penso, neste absoluto silêncio
que me envolve, no que acabo de ver e viver nesta noite inesquecível...
Na fé e no amor que deve existir
no coração destes monges que acordam à meia-noite e passam várias
horas a louvar a Deus e a rezar
pelos homens; sem público que os ouça; sem testemunhas que os
contemplem; e com um ardor e
entusiasmo como não existe em nenhum coral ou companhia de
teatro... E assim, não só um dia,
como eu, mas todos os dias da sua existência. E, pensando nisso,
encontrei a resposta para uma
pergunta que muitas vezes tinha-me formulado: “Por que os pagãos
abraçam a fé? Por virtude de que
força convertemo-nos os pecadores?... É que poderia Deus deixar de
ouvir a oração destes monges, não
ter em conta a generosidade do seu amor, o louvor de quem só vive
para Ele, sem buscar nem esperar
honras e salários humanos, sem contar sequer com a gratidão
daqueles por quem se imolam e
rezam, ocultos e ignorados de todos? Pensei... Acho que esse foi o
último pensamento que passou pela
minha mente nesta noite cartusiana.
Dormi bem. Foi preciso que o
despertador gastasse toda a corda. Amanheço bem disposto e com
intenção de aproveitar este dia,
em que poderei tomar parte nas funções litúrgicas conventuais. Porque,
presenciar a vida do monge na sua
cela, no dia-a-dia, é impossível. Isso está reservado a Deus.
Em breve, às 8h, temos a missa
conventual. Dizem que é o centro do dia cartusiano, a principal
reunião das três que tem a
família monástica todos os dias ordinários e que constituem o seu elemento
comunitário: a lª, a Vigília
noturna; a 2ª, a Missa conventual; a 3ª, à tardinha, com o canto das Vésperas.
A MISSA CONVENTUAL
Vou-me já familiarizando com os
toques do sino do mosteiro. Ontem, contei, tocou oito vezes.
Dir-se-ia que é o cornetim de
ordens deste pequeno e místico exército do Rei do Céu.
Encaminho-me, devagar, à porta da
igreja. Espero que passem todos os monges. Hábitos brancos,
castanhos e alguns levando capas
pretas (são os noviços) passam diante de mim. Quando chega o Pe.
Prior acena-me com a mão e
conduz-me ao mesmo lugar em que estive pela noite no coro: à sua direita.
Agora, de dia, sinto-me um pouco
envergonhado.
O Pe. Prior preside a reunião
desde a sua estala coral, igual em tudo às outras; nenhum sinal ou
distintivo pessoal indica que
seja o Prior. Só que ninguém ocupa o seu lugar quando ausente.
A igreja está agora cheia de luz
matinal, que entra a torrentes pelos grandes vitrais ogivais. Noto que
tem a forma de cruz latina, com
uma única nave. O coro estende-se a ambos os lados dos muros de
toda a nave e sob as grandes
pinturas que os decoram com cenas da vida de Nossa Senhora.
Reunida a Comunidade, começa a
Missa com o Cântico de entrada. Celebram hoje a festa dum
grupo de cartuxos, mártires da
Inglaterra, no reinado do mulherengo Henrique VIII. Não tinha notícias
deles; mas o fato dá-me ocasião
para pensar que também a uns pobres monges, que vivem afastados do
mundo e que não incomodam a
ninguém, pode chegar a hora de testemunhar com a própria vida a sua
fidelidade a Deus e a coerência
com a fé.
As cerimônias da missa cartusiana
diferem bastante das que estamos habituados nas nossas
paróquias. É que os cartuxos
conservam um rito peculiar que lhes vem do tempo da fundação, salvo
algumas modificações ou
adaptações impostas pela Santa Sé. Talvez seja a única Ordem antiga que
firmeza, estabilidade e
sobriedade das instituições cartusianas.
A primeira leitura é cantada no
centro do coro por um monge
jovem. No altar, o celebrante é
ajudado por outro – diácono? – que
nos canta o evangelho e que veste
uma cogula especial com amplas
dobras. No coro, os monges vão
cantando as diversas partes da
missa sem nenhum instrumento
musical. As suas brancas figuras
contrastam com a cor escura das
estalas, iluminadas fortemente
pelos raios do sol que entram
pelas janelas do lado direito. Dir-se-ia
que o astro rei deseja também
associar-se, com o resplendor e a
brancura da sua luz, à ardente
oração destes homens privilegiados.
Findo o canto do Ofertório, tudo
muda, porque tudo emudece.
Vamos entrar na parte principal
da missa, o Cânon, envolvidos no
manto do silêncio cartusiano...
Assisti a outras reuniões religiosas,
devotas e recolhidas; mas isto é
diferente. Apalpa-se o silêncio; tudo está mudo e, no entanto, tudo fala
sem palavras. Acostumado às
nossas movimentadas e musicadas missas da paróquia, o contraste é
enorme. Se o canto gregoriano,
dizem, tem o poder de penetrar no fundo da alma e suscitar ou
remover nela sentimentos que eu
não sei explicar, acrescenta-se aqui o silêncio incisivo que invade tudo.
Intento observar os dois coros.
Os corpos estão calmos; os semblantes recolhidos; atentos a algo
que eu não capto, porque passa
pelo seu interior. Lembram-me essas telas de santos monges que nos
legaram nossos primitivos
[antepassados]. Eu sou curioso, mas não vejo um rosto, um gesto, um olhar
de curiosidade. Procuro um olhar
que se encontre com o meu; mas em vão. Opto por me recolher
também. Vejo, isso sim, rostos
absortos. E não só nos monges mais velhos, também nos novos. Todos
estão inundados por uma religiosa
serenidade.
MOMENTO IMPRESSIONANTE
No entanto, o que mais me
impressiona é o momento da Consagração. Depois de terem adorado
de joelhos o SS. Corpo do Senhor,
todos, jovens e anciãos – alguns octogenários – prostram-se no chão
em profunda adoração.
Não se ouve nada. Tudo cala neste
mundo monástico. A alma da gente, estranhada ante o
surpreendente espetáculo
envolvido pelo fervor que reina no ambiente, parece unir-se a estes seres que,
em atitude de sumo respeito,
colam-se à terra perante a grandeza divina. Levantam-se a um sinal do
diácono. E prossegue a missa com
estes participantes que, para se melhor recolher e alhear-se do
pequeno mundo em que vivem,
cobrem-se completamente com o capuz.
Entram vivos desejos de penetrar
no seu espírito... Que dirão? Que farão nesses instantes?... Mas
esse é um santuário reservado
para Deus... E opto por entrar também eu no meu espírito e preparar-me
um pouco para a Comunhão. Todos
nos aproximamos do altar-mor e colocamo-nos em círculo ao
redor do mesmo para comungar. O
celebrante apresenta-nos o Corpo do Senhor e o diácono o
Sagrado Sangue. Causa-me especial
devoção. E compreendo melhor o valor sacramental destes ritos,
quando vividos e interiorizados
pela fé.
O cântico da Comunhão vem alegrar
estes momentos da missa cartusiana que finda com a oração
final. As notas do duplo Aleluia
pascal do “Bendigamos ao Senhor” deixam um alegre e suave eco no
fundo da alma. A ação de graças é
prostrados também. Tudo durou 45 minutos, mas passaram num
instante. Só pelo vivido nesta
missa mereceu a pena ter vindo à Cartuxa.
À saída, comentando com o Pe.
Prior, dizia-lhe: “Tanto efeito com tão grande simplicidade”. Ele
respondeu: “Não é a simplicidade,
senão a graça de Deus que atua por meio dela”.
Aos domingos, solenidades e
outros dias de caráter mais familiar, a missa conventual é
concelebrada por todos os monges
sacerdotes. Nos dias ordinários, como hoje, estes, como monges
solitários, celebram
solitariamente. Para isso há em cada mosteiro certo número de Capelas e
altares.
Missas solitárias, mas não
“isoladas nem individuais”, visto que nelas está presente todo o mundo. É
por ele que o monge solitário
oferece a Deus a Vítima de todo o mundo, a única que perdoa, purifica e
santifica a Humanidade inteira. É
assim que cumprem a principal missão do sacerdócio. E imagino que
as intenções que li no
“Oferecimento da Vigília”, estarão presentes também nestes momentos do seu
diário e profundo encontro com
Deus... Quanto deverá o mundo às Missas solitárias destes eremitas
que solitariamente, sem dar nas
vistas, em silêncio e profundo recolhimento, amam e adoram a um
Deus a quem o mundo pretende
deixar “solitário”, como inexistente, como morto...!
Depois de celebradas as missas,
os monges voltam às celas, a prosseguir o seu dia monástico. Como
é? Eis o fruto da minha
experiência.
O DIA DO CARTUXO NA CELA
No intuito de conhecer a fundo
esta vida, peço ao Pe. Prior o favor de me permitir passar esta
manhã numa cela, vazia, se entende.
Será, assim, algo como um retiro ou experiência cartusiana,
embora seja por algumas horas.
Concorda benevolamente – Ó bondade cartusiana! –, e levam-me à cela
que tem sempre disposta para os
aspirantes ao monaquismo
cartusiano. Passarei nela a manhã
e inclusive vou comer nela,
como monge. Por isso renuncio ao
café da manhã que me
oferecem. Vou escrever, portanto,
a minha “experiência de
monge”... por algumas horas.
O Pe. Prior diz-me que tudo está
à minha disposição.
Vou contar. Mas, antes, leitor,
ofereço-te e descrevo-te “a
minha casa”.
Porque a cela do cartuxo é isso:
uma casinha, um
apartamento, uma pequena quinta
individual. Se o mosteiro
é o deserto desta família de
solitários, cada cela é uma parte
desse deserto. Se o cenóbio é
como uma mini-cidade, os
claustros são as ruas e as celas
são as casas. Só que, em lugar de terem números, cada uma tem uma
letra. A minha é a “T”. Na porta
está escrito, não o nome do inquilino, senão um texto da Sagrada
Escritura. A minha diz: “Fugirei
para bem longe e permanecerei no deserto” (Salmo 54,8).
Nesta casita o monge passa a
maior parte do dia. Não é, portanto, o “buraco”, a “cabana” ou a
“choupana” que nos imaginamos,
quando ouvimos falar da cela do monge. Eis as suas divisões.
Após o vestíbulo de entrada, há
uma regular salinha chamada “Ave-Maria”. Por quê? Porque está
presidida por uma imagem de Nossa
Senhora, a “Dona” da casa e a “Mãe” do solitário, e porque cada
vez que o monge entra nela reza,
aos seus pés, num pequeno genuflexório, a AVE-MARIA.
À direita, na parede, há um
armário, que se converte em mesa, onde o cartuxo toma as suas
refeições nos dias ordinários. Ao
lado da mesa, existe uma pequena janela – guichê – onde lhe são
colocados cada dia e a hora
oportuna, os alimentos preparados na cozinha. Aos domingos e festas
todos comem juntos no refeitório
conventual.
Passando esta primeira “sala de
recepção e jantar”, entramos noutra, quase igual, e que chamarei
“sala de estar”. Aqui o monge
tem: o oratório, para a reza dos Ofícios e a oração pessoal; uma mesa de
estudo, uma pequena biblioteca
espiritual, várias cadeiras, uma estufa ou fogão de lenha para o inverno
e, no canto esquerdo, o leito
deste asceta de hoje. Mas, não te assustes: a cama é de madeira com um
colchão de palhas, os lençóis e
os necessários cobertores. Dizem-me que é disposição da Ordem que os
monges descansem bem no tempo de
descanso, para estarem em “forma” para os outros exercícios;
que a penitência não consiste em
“matar-se”, senão em “mortificar-se”; não em prescindir do
necessário, antes em renunciar ao
desnecessário.
Ao lado da cama diviso um “pau”
apoiado na mezinha. É que, quando o cartuxo é acordado pelo
monge “despertador” desde a porta
de fora – mediante um pequeno sino que pendura no interior e
perto do leito –, o acordado bate
o soalho com o pau. É o sinal de que tudo corre bem. Se não der esse
sinal, o “despertador” entraria
para ver a causa e avisar, se for necessário, ao Irmão enfermeiro ou ao
médico. Tudo está previsto!
Seguindo nossa visita, a cela tem
mais estas dependências: banheiro, um longo corredor, em cujas
paredes vejo as 14 cruzes de uma
rústica Via-Sacra, uma oficina de carpintaria onde o monge pode
realizar alguns trabalhos manuais
e partir a lenha para a estufa própria ou para os outros; e, enfim, um
jardim ou pequeno horto de boas
proporções. Aí, em contato direto e salutar com a natureza, o cartuxo
cumpre a lei do trabalho
cultivando algumas hortaliças, flores e árvores frutíferas; e, sobretudo,
mantém
o necessário equilíbrio
físico-psíquico, absolutamente necessário para viver qualquer vida.
No jardim há uma fonte e um
pequeno tanque para regar. Em cima da fonte contemplo uma
grande cruz de madeira coberta,
em parte, por umas trepadeiras em flor. No pé da cruz noto uma
inscrição, quase oculta pelo pó.
Limpo-a com a mão e leio: “Sendo verme deste chão, aqui me
nasceram asas para voar até
Deus”...
UMA VIDA NA LUZ
Como vês, caro leitor, a “minha
cela” tem mais de “casa” do que de lôbrega cela; é mais uma linda
casita de campo, rústica e
simples; ou, se preferes, um “chalet”, mas sem esses luxos e confortos que
tem o moderno “chalet” suíço das
nossas cidades. Falando com mais propriedade é uma ermida. Uma
casita branca, limpa, cheia,
inundada de luz e silenciosa. O silêncio é só interrompido pelo chilreio dos
pintassilgos e outras aves que
vêm beber na fonte do jardim e picar as frutas...
Paredes brancas, luz branca,
hábitos brancos, tudo é símbolo da brancura de uma vida que discorre
na luz, no silêncio, na paz.
Inúmeras vezes tinha-me perguntado: Que farão os monges na cela? E a
melhor resposta encontro-a lendo
os Estatutos da Ordem, que formam parte dos livros desta pequena
biblioteca da cela. Transcrevo na
íntegra: “A nossa principal aplicação e propósito de vida consistem
em nos dedicarmos ao silêncio e à
solidão da cela. Esta é a terra santa e o lugar onde o Senhor e o seu
servo conversam frequentemente
como entre amigos” (Estatutos Cartusianos 4.1). “Deus trouxe- nos ao
deserto para nos falar ao
coração. Seja, pois, nosso coração como um altar vivo donde se eleve
continuamente para o Senhor uma
oração pura” (Idem. 4.11). O monge “considere a cela tão necessária
a sua salvação e à vida, como a
água aos peixes e o redil às ovelhas [...] Quanto mais permanecer na cela,
mais gostosamente se sentirá,
desde que aí se ocupe ordenada e proveitosamente a ler, escrever,
salmodiar, rezar, meditar,
contemplar, estudar e trabalhar. Acostume-se a uma escuta tranquila do
coração, para permitir que Deus
entre nele por toda as portas e acesos” (Idem. 4.2).
Isto me faz pensar que a vida do
monge cartuxo não é a vida dum burguês nem a dum enfastiado
da vida nem a da gente que busca
um descanso e um retiro para se ocupar num “doce far niente”. É,
pelo contrário, uma vida
exigente, que reclama domínio de si mesmo, força de vontade, sentido de
responsabilidade para cumprir um
horário cheio de ocupações espirituais e corporais prudentemente
intercaladas. É a força da
vocação ou, como diz o texto copiado, a força dum amor que opta por se
dedicar a Deus por completo.
Emprego o meu dia de “monge”
cartuxo, seguindo o horário dos monges; dá conforto pensar que
todos estamos a fazer o mesmo e
que, separados corporalmente, estamos unidos na mesma ocupação.
O horário marca “trabalho manual”
para antes do almoço. Cumpro-o regando as plantas do meu
jardim: roseiras, árvores,
flores...
ALIMENTAÇÃO
Pelo trabalho realizado, ou
porque aos 20 anos o apetite está sempre aberto de par em par, sentome
à mesa com verdadeiro apetite.
Colocaram-me, à petição minha, a mesma refeição que a
Comunidade tem hoje: sopa de
ervas, feijão branco com batatas, peixe, vinho e frutas do tempo como
sobremesa. Menos o peixe, tudo é
“made in Cartuxa”. Tudo está bem preparado. Talvez por aquilo que
contam de Santa Teresa de Jesus:
“Quando perdiz, perdiz; quando jejum, jejum”. Com o qual a grande
Reformadora queria indicar que é
preciso aceitar do mesmo agrado a lei do jejum como o preceito de se
alimentar devidamente.
Na Cartuxa não é tempo de jejum o
que vai desde a páscoa até o 14 de setembro; neste tempo,
assim como todos os domingos do
ano e dias de festa, tomam-se duas refeições: almoço e ceia. No
tempo de jejum, almoço e uma
colação pela noite. No Advento e Quaresma renunciam, por espírito de
penitência, ao leite e seus
derivados. Nas VI-Feiras, dia da penitência cristã, contentam-se com pão e
água quando estão de saúde e são
autorizados para isso. E, para sempre, os cartuxos renunciam à carne
desde que entram na Ordem.
Quando a gente ouve tudo isto dum
golpe ou lê tudo junto sobre o papel, quase fica espantado de
medo. Mas estou vendo que esta
sobriedade e frugalidade, este equilíbrio e ordem alimentar é
maravilhosa para o organismo e
saúde destes homens. Assegurava-me o Pe. Procurador que o jejum e a
abstinência prudentemente
realizados, longe de prejudicar a saúde, ajudam-na e concorrem para uma
boa longevidade. E acrescentava:
“Maior dano causa à saúde um dia de desordem ou uma noite de farra,
do que um ano de austeridade
cartusiana. Até o presente, nenhum cartuxo morreu de fome ou por
causa dos jejuns”. É corrente e
normal os cartuxos viverem muitos anos.
EMBAIXADA EXTRAORDINÁRIA
Conta-se que o Papa Urbano V,
sobrinho dum cartuxo e grande
admirador da Ordem de São Bruno,
quis mostrar a sua benevolência aos
cartuxos, mitigando-lhes o rigor
da sua austeridade – que ele julgava excessiva
–, concedendo-lhes poderem comer
carne. Na Ordem há sobressalto e
aos cartuxos seguir a tradicional
observância cartusiana.
Para melhor moverem a Papa a
isso, a “embaixada” enviada para
apresentar ao Sumo Pontífice a
petição da Ordem estava formada por um
grupo de 27 cartuxos, escolhidos
nos mosteiros da Itália, o mais novinho dos
quais só tinha 88 primaveras
cheias de alegria... Perante aquele grupo de tão
singulares “embaixadores”, o Papa
ficou convencido, pelos próprios olhos,
que não era necessário comer
carne nem mitigar o rigor da observância
monástica para conservar a saúde
e viver muitos anos. A prudente austeridade
da Cartuxa não tirava a vida dos
monges. À vista da singular embaixada, disse
aos Cardeais presentes: “Visto
que os monges cartuxos não querem as mitigações que intentávamos
impor-lhes, deixemo-los viver
como até ao presente”. E o grupinho de “jovens visitantes” saiu muito
contente da presença do Vigário
de Cristo.
E quando eu estava no coro,
lembrava-me deste fato ao ver vários monges desta Comunidade que
supera os 80 anos e que, no
entanto, assistem a todos os Ofícios como os mais novos e, por certo, sem
comerem carne...!
DIAS COMUNITÁRIOS
Mas, sigamos com as nossas
“impressões”. O monge cartuxo nem sempre está a sós, nem sempre
acompanhado. Vida solitária e
vida comunitária são as características da sua vocação, se bem que com
certo predomínio da primeira. É
por isso que os domingos e solenidades –os cartuxos têm mais festas
litúrgicas do que nós– são dias
comunitários, algo assim como festas “familiares” em que o elemento
cenobítico fica em relevo. Daí
que cantem todas as Horas do Ofício no Coro, comam no refeitório e
tenham um recreio na quinta do
mosteiro.
O refeitório conventual é uma
ampla sala onde conto 55 lugares ou serviços de mesa: talheres de
madeira, jarra de louça para a
água e o vinho e guardanapo. O copo, de louça, tem duas asas e o escudo
da Ordem. As paredes estão
decoradas com sete grandes quadros de Bardin, representando os sete
Sacramentos. Um grande crucifixo
preside a sala e aos pés do mesmo está a mesa do Pe. Prior. Não
falam durante a refeição, mas um
monge faz uma leitura desde o lectório. Assim alimentam, ao mesmo
tempo, o corpo e o espírito.
Depois das refeições o cartuxo
tem tempo livre. Uma espécie de recreio na própria cela que cada
um dedica livre e utilmente
segundo as suas atitudes ou gostos. É que na Cartuxa rege o princípio, nove
vezes secular, da discrição: o
monge deve procurar, antes de tudo, manter em forma o seu equilíbrio
físico e psíquico para servir com
ele ao Senhor. “Se faltar esse equilíbrio – dizia um Pe. Geral – o
mosteiro converter-se-ia logo num
hospital”. Talvez por essa discrição a Ordem Cartusiana tem nove
séculos de vida...
O CEMITÉRIO
Eu aproveito este tempo livre
para visitar o cemitério dos monges. Está no centro do jardim central
circundado pelo claustro, no
lugar mas silencioso e recolhido do mosteiro.
É um grande quadrado, marcado e
defendido por um baixo muro de pedras e uma fila de vetustos e
esbeltos ciprestes, que cravam no
céu as setas dos seus vértices. É austero em extremo, como tudo na
Cartuxa. No centro há uma grande
cruz de ferro sobre uma base de granito cinzento. E ao redor dessa
Cruz grande, uma série de
pequenas cruzes de madeira guardam as sepulturas dos monges: pequenos
montículos de terra. Aí
descansarão os restos mortais dos que aqui viveram, à espera da ressurreição
final. Aí repousarão o sono da
morte... Essa hora tão temida para os que vivemos imersos nos
egoísmos e nas vaidades do mundo.
As sepulturas, como as cruzes,
são todas iguais. Cumpre-se, realmente, o ditado: “A morte é a
igualdade dos desiguais”. Não tem
nome, nem sinal algum. O mais completo anonimato. Suprema
coerência entre vida e morte. Em
vida, viveram ocultos, ignorados, escondidos com Cristo, em Deus. E
na morte escolhem o mesmo
ocultamento; a mesma simplicidade oculta agora a grandeza, a pureza, a
generosidade de uma existência
consumida no amor de Deus. Para Deus na vida e para Deus na morte.
Acho ser São Bernardo quem faz um
trocadilho com palavras latinas, referindo-se à morte do monge:
“E cela in coelum”: “Da cela vai
para o céu”.
Este cemitério faz pensar à
gente... Sem querer, vieram-me à memória os versos conhecidos do
poeta:
“Aqui o silêncio a meditar
convida,
e nesta solidão a alma adverte
que é um sono a vida,
que a verdade começa após a
morte”.
Vida oculta, santidade oculta,
morte oculta. Ninguém se dá conta da morte destes monges; mas,
quantos prefeririam morrer como
eles...!
OBEDIÊNCIA NO SEPULCRO
Contaram-me esta singela e
interessante história. O Irmão Guilherme distinguiu-se sempre pela sua
vida santa e o fervor da sua
observância. E morreu como tinha vivido: santamente. E foi enterrado
como todos: simplesmente,
cartusianamente, como todos seus irmãos.
Uma florzinha, porém, que nascia
na sua sepultura, tinha o privilegiado dom de curar certas
doenças. E espalhou-se a
sensacional notícia pela região onde, aliás, era conhecida a santidade do
Irmãozinho. E muitíssimas pessoas
de toda a condição, violando o silêncio e a solidão e a clausura do
mosteiro, procuravam a almejada
flor na sepultura do Irmão...
Que fazer? Diziam os pobres
monges.
À vista de tal desordem, nunca
conhecida, o Pe. Prior reúne a Comunidade e vão ao cemitério. E
ele fala ao Irmão nestes termos:
“Caro Irmão Guilherme: Durante toda a tua vida brilhaste pela
observância de todas as nossas
regras. Então, agora, depois da tua morte, vais consentir que o nosso
silêncio e solidão, nossa clausura
e recolhimento, sejam perturbados e impossibilitada a nossa vida de
oração?”
E o Irmão, tão obediente em vida,
entendeu e obedeceu também na morte: a flor em menção
deixou de realizar mais milagres.
E cessou o concurso do povo a sua sepultura...
FALA UM CARTUXO MORTO
Voltei à cela impressionado. Era
a primeira vez que visitava o cemitério dum mosteiro, onde o
silêncio era profundo e a solidão
imensa. Ambos, porém, eloquentes.
Já te disse, leitor, que vim à
Cartuxa com o desejo de conhecer a fundo esta vida e o propósito de te
contar sinceramente as minhas
impressões. Mas, falando verdade, o maior anelo que sentia era poder
penetrar na alma dum monge
cartuxo. Mas, como entrar nesse santuário em que cada um de nós vive,
face a face com Deus, o enigma da
nossa vida? Porém, tive sorte!
Na pequena biblioteca da cela em
que passo estas horas e cujos livros me permitiram ver, encontro
um caderninho datilografado e
policopiado para o uso dos monges. Tem 16 páginas. Está intitulado:
“Já sou cartuxo!” É uma coleção
de pensamentos ou, como diz o subtítulo, “Notas íntimas”, num total
de 49, em que aparece diáfana a
alma do seu autor: um cartuxo já falecido. Não tem uma ordem
sistemática. Dir-se-ia que o
autor escreveu ao impulso do seu coração sobre diversos assuntos, tais
como os via e vivia naquele
momento. O importante para nós é que nos diz o que nenhum cartuxo
teria dito diretamente, sobre
pontos vitais da sua vida.
Na impossibilidade de
transcrevê-los todos, escolho alguns. Espero que o seu autor perdoará, desde
o céu, esta travessura
jornalística.
Eu gostava de saber o que o monge
pensa da sua vocação, sobretudo da cartusiana, que tão dura
pintam. Eis o que diz:
“I. Sou cartuxo! Sim!
O que tanto desejei! O que tanto sonhei! Muitas vezes pergunto-me a mim
mesmo: Será realidade tanta dita?
Sim! Já sou cartuxo e vou a caminho do Céu; e chegarei
indefectivelmente, se caminho sem
desfalecimentos, sem vacilações... Sou cartuxo e sê-lo-ei
eternamente, porque a g1ória,
como a graça, não destrói o que criou. Ser bom cartuxo na terra é ser
melhor cartuxo no Céu”.
Antes te falei da cela do
cartuxo. Lê o que ele pensa e vive:
“III. A minha cela. Tenho
uma cela que nunca abandono, porque a levo sempre comigo... A cela
em que o bom Deus gosta de se
comunicar comigo é a minha alma. O meu coração. Procuro ter essa
cela bem limpa e silenciosa,
porque só assim agradará a Deus. Não me importa o lugar em que me
colocar a obediência: a todas as
partes levo a minha cela. Se souber habitar nela a sós com Jesus e ter
sempre bem fechadas as suas
portas, ninguém perturbar a minha paz nem violará a minha clausura... A
cela do meu coração... Sem esta,
a cela material em que vivo seria só quatro mudas paredes, uma gaiola
sem pássaro...”
E onde encontrará o cartuxo a
força para “sua vida”?
Perguntava-me a mim mesmo. E
encontro esta resposta:
“IV. O Crucifixo. O
Crucifixo da minha cela, do meu
oratório, é o confidente das
minhas penas e das minhas alegrias...
Quanta coisa me diz ele nos
momentos de desfalecimento... Basta
tomá-lo em minhas mãos e
apertá-lo contra o meu coração, para
me sentir logo confortado... O
meu Crucifixo! É a minha arma de
combate na terra e Ele será a
minha coroa no Céu. Desejo morrer
abraçado com Ele”.
Contei acima as minhas impressões
sobre o Ofício Noturno
cartusiano. Agora transcrevo as
“impressões” dum cartuxo real:
“VIII. As minhas horas de
céu. Adivinhas quais são... As que passo cada noite com Jesus. As que
passo lá, à sombra do Sacrário...
É o canto do meu Ofício à meia-noite. A minha Vigília. Ó, nessas
horas sinto-me mais cartuxo que
nunca. São as horas da entrevista entre Deus e a minha pobre alma...
Nessas horas benditas acho-me
mais perto do Céu; porque, afinal, o Céu não está onde está Jesus? Por
isso, privar-me das Vigílias
noturnas seria para mim perder um dos maiores encantos da minha vida e
vocação cartusiana. Ó, suaves
horas as das minhas Vigílias, tão perto do meu Bom Jesus...!”
Eu pensava que os monges cartuxos
estariam já livres de tentações e perigos. Mas, eis o que nos diz
este bom monge:
“IX. As tentações. Já
me não assustam as tentações. Encontrei uma âncora onde amarrar a minha
alma, a vocação. A minha âncora é
MARIA... Poderá o nosso inimigo investir contra a alma, jogar com
ela; mas confio em que jamais
poderá fazê-la naufragar. Ao sentir o bramido do trovão, deito minha
âncora em Maria e permaneço
tranquilo. Na tempestade, Ela é a minha âncora. Na bonança, o meu
timoneiro. Como é doce navegar ao
seu suave impulso do seu carinho maternal. Por isso, antes me
arrebatariam a vida, o meu
coração, do que tirar-me a Minha Mãe, o meu grande amor, a Virgem
Maria...!”
Para a gente do mundo foi sempre
um enigma indecifrável a vocação cartusiana. Qual o por que?
Esta é a motivação do nosso
cartuxo:
“XI. A minha vocação. Abracei
a vida cartusiana disposto a fazer do meu corpo uma hóstia que
se imolasse na ara do divino
amor. Então? Por que queixar-me ao sentir a ação do fogo que vai
consumindo a vítima? Ó, sim!
Vigílias, jejuns, cilício, abstinência, austeridades da minha vida cartusiana,
eu vos aceito e vos abraço para
sempre como instrumentos de Deus; com eles se há de lavrar a minha
coroa de glória. Eu vos amo como
os mártires amavam os instrumentos e correntes do seu martírio!”
Por vezes chamamos “egoístas” os
monges. As palavras seguintes revelam-nos como é esse
“egoísmo” monástico:
“XII. Dar-me? Emprestar-me?
Emprestar-me a todos. Dar-me a ninguém. Emprestar-me equivale
a servir, a comprazer, a ajudar
de bom grado a todos os que solicitem meus serviços; fá-lo-ei a todos e
sem esperar salário. Emprestar-me
a todos... Dar-me a ninguém! Entreguei-me a Deus pelos votos,
absoluta e irrevogavelmente...
Se, pois, não sou meu, se não me pertenço, como me poderia dar a
alguém?”
E que diferença entre os
sentimentos que nos invadem no dia do nosso “aniversário”, e os
sentimentos expressos pelo nosso
monge no “aniversário” da sua Profissão monástica:
“XXXVII. Hoje é o
aniversário da minha Profissão... Aniversário daquele dia feliz,
daquele dia
de BODAS. Como esquecê-lo?...
Primeiro o canto do “Suscipe me, Domine... – sustenta-me, Senhor”; a
seguir os votos; ao final a
COMUNHÃO... Lembras-te, minha alma? Cumpriste o que prometeste?
Foste boa e fiel, mas
pobrezinha... Encarcerada como estás neste corpo, tiveste que sofrer as
rebeldias
da carne viciosa. Perdoa, minha
alma, e cantemos juntos novamente ao Senhor o suave epitalâmio
daquele dia venturoso: “Suscipe
me, Domine, secundum eloquium tuum et vivam...! – sustenta-me,
Senhor, segundo tua promessa e
terei a vida...!” (Sl 118, 116).
E para findar, vá esta nota
íntima que nos descobre a fina sensibilidade do coração do seu autor:
‘‘XIX. Enamorado de Maria. Devo
confessá-lo: Um dos maiores encantos que a Ordem
Cartusiana tem para mim, é que
nela se professa um terníssimo amor à Santíssima Virgem Maria. De
não ser assim, duvido que a minha
alma se tivesse aclimatado a viver sem Ela. Talvez seja um amor
calado, sem ostentação, sem
alardes... É o amor dos filhos que, por ser natural, brota livre e espontâneo
dos corações. Cada cartuxo,
pode-se assegurar, é um enamorado da Virgem...”
Amigo leitor: Sinto não te
oferecer todas estas “notas íntimas” deste cartuxo que, mesmo morto,
ainda nos fala através delas.
Merecia a pena, embora fosse só porque gostamos conhecer o interior da
gente; mas seria extenso demais.
As transcritas, porém, bastam para vermos como pensam e vivem a
sua vida estes monges brancos. A
cor branca é a abertura e disponibilidade para todas as cores... A alma
destes monges deve ser branca,
como o seu hábito, com absoluta disponibilidade para Deus. Uma vida
que se nos escapa, que nem
imaginamos, por estar escondida em Deus...
TRABALHO
Não sei que seria dos Anjos, se
algum dia se lhes ocorresse fazer de homens... A história, porém,
diz-nos o que é dos homens,
quando tentam viver como anjos: acabam sendo nem homens nem anjos.
Digo isto porque a ignorância dos
que “tudo sabem” fala dos monges como dos “parasitas da
sociedade”, cujos bens são “bens
em mãos mortas”, e cuja vida discorre”, segundo eles, na mais
grosseira ociosidade.
Reminiscências do anti-clericalismo dos tempos idos do “Mata-frades”.
Dedico esta tarde para visitar,
acompanhado do Pe. Procurador, as diversas dependências do
mosteiro, “obediências” na gíria
cartusiana.
Disse já que o mosteiro é uma
mini-cidade e que, enquanto possível, procura abastecer-se a si
mesmo. É uma família ordenada
onde todos os membros procuram o bem comum, segundo as suas
possibilidades. Todos estão
obrigados à lei do trabalho e todos os ofícios encontram ocupação. No
mosteiro há trabalho para todos.
Porque, quem não é apto para manejar, ao menos, a vassoura como o
angelical “frei Vassoura”?
O trabalho é variado. Os monges
sacerdotes e os que se preparam para o sacerdócio, deverão
ocupar-se no pesado trabalho
intelectual na solidão e, mesmo nela, deverão executar também certos
trabalhos materiais ou serviços
para a Comunidade, além do cuidado da própria cela. Os monges não
sacerdotes estão incumbidos da
direção e realização dos trabalhos materiais, propriamente dito,
necessários para a subsistência
de toda a família. Nem podia ser de outra maneira, visto que os cartuxos
não são anjos –nem tentam viver
como anjos!– e não podem sair pelo mundo fora à procura de
esmolas e ajudas materiais.
Este mosteiro tem uma pequena
granja agropecuária com vacas leiteiras, galinhas e colméias.
Vendem os ovos que não consomem,
e com o leite fabricam o delicioso queijo cartusiano, “a carne
cartusiana”. E tem também uma
fábrica interessantíssima de... terços de pétalas de rosas, que nunca
perdem o seu suave perfume.
Quando vi os numerosos tabuleiros colocados ao sol para secarem as
contas, compreendi o porquê
daquele campo da entrada, onde só havia plantadas roseiras.
Na carpintaria cumprimentei o Ir.
Bonifácio, franzino e de barba branca, que leva 40 anos na sua
carpintaria, sem que isso seja
obstáculo para prestar a sua ajuda em outros lugares. É o “chefe” das
colméias. E, deve ser tal, que as
abelhas não lhe picam. Ele diz que está “imunizado”...
Na ferraria contemplei vários
Irmãos trabalhando na armação metálica para vigas de cimento, que
logo empregarão nas obras de
reconstrução do mosteiro que eles mesmos levam a cabo. E que ardor,
que carinho e cuidado no
trabalho. Durante o mesmo só falam o necessário para o que têm entre mãos.
E... sem nenhum capataz ou
vigilante!
Pergunto ao Pe. Procurador:
“Quantas horas têm de trabalho?” Responde: “Sete, mais ou menos,
divididas entre manhã e tarde.
Mas tenha em conta que trabalham por amor de Deus, que fazem do
trabalho uma obra de caridade
comum e um meio de colaborar com Deus na conservação do nosso
mundo”.
Portaria, cozinha, lavadouro,
alfaiataria, pintura... de tudo há no mosteiro. O trabalho não falta.
Graças a esta familiar comunhão e
interdependência dos monges sacerdotes e não-sacerdotes, a Ordem
Cartusiana, diz-me o Pe.
Procurador, pode conservar integralmente o seu carisma puramente
contemplativo, quer dizer, sem
ministérios ativos externos.
AS VÉSPERAS
Meia hora antes das Vésperas,
pelo menos, cessa o trabalho no mosteiro. E que todos os membros
da família monástica devem
participar na última reunião conventual do dia: o canto das Vésperas. Tem
lugar às 17h15min.
Participo também –sou monge por
dois dias!– ao lado do Pe. Prior, no coro. E a oração da tarde.
Um canto vivo, forte e alegre.
Como estamos no Tempo Pascal, o Alleluia repete-se inúmeras vezes
comunicando alegria interior.
Aqui não poderia viver um
temperamento triste ou
melancó1ico. Rebentaria, com certeza, com
tanta alegria e aleluias.
E como digna coroa deste Ofício
vespertino, canta-se a “Salve
Regina”. E a despedida que a
família dirige à Senhora do mosteiro,
cuja imagem preside desde o
centro do retábulo. Porque na Ordem
Cartusiana, como ponto das
regras, todos os mosteiros estão
especialmente dedicados à
Santíssima Virgem. Será por isso, também,
que é invocada com o título de
“Mãe Singular dos cartuxos”.
“Singular” quer dizer “de cada
um”. E penso que necessariamente
deve ser assim, e que Ela será a
amável interlocutora da solidão
cartusiana, e que terá um lugar
de preferência no coração do cartuxo, tal como o teve, com certeza, no
Coração de Jesus. E acho-o muito
natural. Porque se nós, os simples cristãos do mundo, precisamos
tanto dessa Mãe, quanto mais
estes homens de Deus! Dizem-me que Nossa Senhora é a encarregada de
procurar as vocações cartusianas.
E para manter vivas essas relações de Mãe e filhos, os cartuxos
recitam todos os dias o Ofício de
Nossa Senhora e celebram uma missa que, aos sábados, é cantada.
A Salve da Cartuxa, gregoriana
ornamentada e suave, deixa-me cheio de saudades e não sei se
também de devoção... Eu que
pensava ter um coração duro...!
“LADRÃO DE NOTÍCIAS”
Disse, ao começo, que a antiga
amizade do meu pai com um monge deste mosteiro foi o eficaz
“pistolão” que me abriu as portas
para esta visita e experiência cartusiana.
Trouxe comigo umas linhas do meu
pai para o seu velho amigo e, como não?, um abração bem
efusivo.
Hoje, a seguir das Vésperas, o
Pe. Prior, com a sua costumada bondade, acompanhou-me à cela do
monge amigo. Apresentou-me e, com
suma delicadeza, deixou-nos a sós, enquanto ele retirava-se às
suas ocupações.
Diz o ditado que “A ocasião faz o
ladrão”. No meu caso, a ocasião desta visita fez de mim um
“ladrão de notícias” vivas e
interessantes sobre a vida cartusiana. Explico-me.
Depois de ter lido a carta do meu
pai e de falarmos sobre a sua velha amizade –desde os tempos da
infância–, indiquei ao Padre o
desejo do meu progenitor de lhe levar gravada alguma mensagem ou
palavras do caro amigo. Tinha
para isso licença do Pe. Prior. Acedeu bondoso. E a seguir –e aqui
começa o meu roubo! –, sem querer
querendo, o gravador seguiu funcionando e gravando, enquanto eu
ia fazendo-lhe algumas perguntas.
Como não imaginei esta “ocasião”, não me pôde preparar.
Eis, contudo, o conteúdo desta
improvisada entrevista:
Eu – “Qual foi a primeira
surpresa que levou na Cartuxa?”
Pe. – “Ver a rapidez com
que passa o tempo”.
Eu – “Que é o que mais
custa no mosteiro?”
Pe. – “Como em tudo,
perseverar no caminho empreendido”.
Eu – “Que tempo leva na
Ordem?”
Pe. – “Dois anos mais do
que você na vida”.
Eu – “Que tempo tem a
Ordem de existência?”
Pe. – “Nove séculos.
Precisamente, este ano celebramos o IX Centenário”.
Eu – “Quais as
características da vida cartusiana?”
Pe. – “Ser um monaquismo
composto de vida solitária e comunitária, equilibradamente
harmonizadas, e onde entram as
notas que o Vaticano II indicou para os Institutos puramente
contemplativos: entrega total a
Deus na solidão, no silêncio, na oração e generosa penitência”.
Eu.– “Pensa que Jesus foi
contemplativo?”
Pe. – “Se acreditamos no
Evangelho, Jesus aparece nele mais como contemplativo do que ativo:
30 anos de vida oculta e
silenciosa em Nazaré, 40 dias completos no deserto, noites inteiras passadas na
oração solitária e outros
numerosos momentos da sua vida pública. Somando tudo, dão mais de 9
décimos da sua existência como
contemplativo. O mesmo Vaticano II, quando exorta os religiosos à
imitação de Cristo nos diversos
aspectos da sua vida, menciona em primeiro lugar a dimensão
contemplativa: “Cristo
contemplando na montanha” (Lumen Gentium n°46).
Eu – “Então, antes do Concílio
a Ordem cartusiana não tinha uma justificação evangélica para
sua vida?”
Pe. – “Nove séculos antes
do Vaticano II, nosso legislador tinha já proposto a vida solitária de
Jesus como ideal da nossa
vocação. E para que você não pense que são coisas minhas, veja o que dizem
os Estatutos com as palavras
daquele: (apanha um livro da mesa e lê em voz alta) “O próprio Jesus,
Deus e Senhor, cuja virtude não
podia encontrar apoio no retiro nem obstáculo na sociedade dos
homens, contudo, para nos
instruir com seu exemplo, antes de começar a sua pregação e os seus
milagres, quis submeter-Se em
certo modo a uma prova de tentações e jejuns na solidão. Dele nos
refere a Escritura que, deixando
a multidão dos discípulos, subia sozinho ao monte para orar. E,
quando já estava iminente o tempo
da Paixão, deixou os Apóstolos para orar a sós, dando-nos com isto
o melhor exemplo de quanto a
solidão favorece a oração, pois não quer orar acompanhado, nem sequer
dos seus Apóstolos” (Estatutos
Cartusianos 2.9).
E para maior esclarecimento, o
Capítulo Geral de 1582 inseriu no mesmo capítulo dos Estatutos
este número: “Não devemos passar
aqui em silêncio um mistério que merece toda a nossa atenção: foi
Ele, o Senhor e Salvador, que se
dignou mostrar-nos em sua própria pessoa o primeiro modelo vivo da
nossa Ordem, quando, a sós no
deserto, Se entregava à oração e a exercícios da vida interior, macerava
o corpo com jejuns, vigílias e
outros frutos de penitência e vencia as tentações do inimigo com as armes
do espírito”.
Eu – “E não será que o
monge contemplativo consome inutilmente a vida na solidão, podendo
fazer muito bem no mundo?”
Pe. – “Seria como dizer
que a vida de Jesus em Nazaré, durante 30 anos, foi inútil para a
Redenção... No entanto, sabemos
que toda a sua vida foi redentora, e que toda ela deve ser prolongada,
revivida, imitada. Isso é o que
procuram as diversas Famílias religiosas. Deus concedeu aos cartuxos
viver, imitar, prolongar através
dos séculos, esse aspecto contemplativo de Jesus”.
Eu – “E essa vida, não
torna o monge “egoísta”, ou “narcisista” embora seja no espiritual?”
Pe. – “Deves ter em conta
que toda a vocação, ativa ou contemplativa, é um dom pessoal e
eclesial ao mesmo tempo”.
Eu – “Quer explicar um
pouco?”
Pe. – “É dom pessoal,
enquanto é graça e favor que um indivíduo recebe de Deus para a sua
realização pessoal. É eclesial,
porque esse dom recebido particularmente está destinado ao proveito de
toda a Igreja. Todos somos
membros do Corpo Místico e, no corpo, todos os membros concorrem
para o bem comum, embora tenham
diversas funções”.
Eu – “Que função têm os
cartuxos nesse Corpo?”
Pe. – “Os Papas, sobretudo
os dos últimos anos, insistiram
em afirmar que os contemplativos
têm no Corpo Místico a função
de “artérias espirituais”, de
“ocultos canais da vida divina” ou, como
disse João XXIII e repetiu nosso
atual Papa (João Paulo II) há
pouco, “têm o seu lugar no
coração da Igreja”.
Eu – “Desculpe-me. Como
concorrem os contemplativos
para difundir essa vida divina no
mundo, se não pregam, etc.?”
Pe. – “Simplesmente,
vivendo para Deus, vivendo com Deus,
permanecendo sempre unidos a
Deus. É dessa vida com Deus, que
eles tiram a vida para as almas;
é por essa amizade com Deus, que
eles intercedem pelos seus
irmãos; é pela integridade desse amor
dedicado ao Senhor, que eles
difundem o amor. Você sabe que Deus é a fonte da vida, da paz, do
amor... Ora, quanto mais unido
está o monge a essa FONTE, maior abundância recebe dessas águas. O
monge define-se melhor, não pelo
que faz, senão pelo que vive”.
Eu – “Perdão. Diz o Sr.
Padre que, segundo os Papas, os contemplativos têm “o seu lugar no
coração da Igreja”. Que significa
isso?”
Pe. – “Você sabe que,
fisiologicamente, o coração é o órgão principal do nosso corpo; e,
moralmente, é reputado como a
sede dos nossos amores. Ora, quando os Papas chamam os
contemplativos “coração da
Igreja” e colocam nesse coração o seu lugar eclesial, penso que estão a
colocar a vida contemplativa no
mais profundo e delicado do Corpo Místico, no mais interior da sua
vida, no amor de Deus. Mais
ainda, lembrando-lhes esse lugar, estão a pedir-lhes que sejam, realmente,
coração e só coração. Em
consequência, é como lhes recordar que o coração nunca sai do tórax nem
deixa entrar em si mesmo senão
aquilo que é especificamente seu: o sangue. E se o amor de Deus é a
vida da Igreja e das almas, os
contemplativos, no coração da Igreja, têm por função própria viver
integralmente para esse Amor. E
assim como o coração funciona e purifica o sangue desde esses
movimentos de diástole e sístole,
que nem transbordam a capacidade torácica nem deslocam a sua
ubiquação orgânica, os
contemplativos nem devem pretender sair do seu lugar –coração da Igreja,
vocação contemplativa–, nem
procurar nem admitir outras funções diversas das especificamente
contemplativas. Como diz o
Concílio: viver integralmente consagrados a Deus...
Eu – “Por que a gente do
mundo não compreende nem aceita esta vida?”
Pe. – “Para compreendê-la
e aceitar é preciso colocar-se em “sintonia” com Deus ou, se queres,
na onda da fé”.
Eu – “Quer dizer…”
Pe. – “Que a vida
contemplativa só se explica admitindo e acreditando que Deus é nosso Pai,
Dono e Supremo Senhor e que, como
tal, tem absoluto e pleno direito para escolher alguns dos Seus
filhos que tenham como especial
função a de viver radicalmente para Ele, para O amar, servir e louvar
por todos os filhos que isso não
fazem. Os antigos monges chamavam “vida angélica” a vida
monástica; com isso queriam
indicar essa entrega total a Deus e proveitosa para os homens.
Eu – “Se não compreendi
mal, os contemplativos têm, diríamos, o “ministério” da união com
Deus. Não é?”
Pe. – “É. E, precisamente
–e embora seja repetir ideias-, na medida em que se une a Deus, une
com Deus e está unido com todos
aqueles que amam a Deus; e na medida em que procura elevar-se
para Deus, eleva as almas para
Ele; e na medida em que se perde ou funde em Deus, atrai para esse
abismo de amor e de misericórdia
o coração de todos os homens. Assim, como diz São Bernardo, se
mal não lembro: “O monge é o
homem reconciliado e unido com Deus, que realiza a reconciliação
universal”.
Eu – “Sob a condição de
não deixar de ser coração...!”
Pe. – “Exato!”.
Eu – “Por que são poucos
os contemplativos?”
Pe. – “Porque os homens
temos a facilidade de nos apegar a muitas criaturas, e a vida
contemplativa implica,
precisamente, a renúncia de muitas criaturas para se contentar com Deus”.
Eu – “Quantos cartuxos há
na atualidade?”
Pe. – “Ao redor de 500 em
25 mosteiros”.
Eu – “E quantos cartuxos
calculam hoje desde a fundação?
Pe. – “Segundo os dados
publicados num livro, aparecido em 1982, calculam-se em 60.000 nos
nove séculos de existência. Tenha
em conta que houve mais de 300 mosteiros nos melhores tempos.
Eu – “Quais as causas da
diminuição?”
Pe. – “Começou com a
Reforma Protestante e seguiu com a devastação causada pela peste,
guerras, perseguições, expulsões
e espó1ios dos séculos posteriores. Aliás, e esta é a razão principal,
quando a fé esfria-se, diminui
automaticamente o número de vocações. Infelizmente, o hedonismo e o
permisismo reinantes não são o
melhor ambiente para o cultivo de vocações contemplativas.
Eu – “Qual a idade para
entrar na Cartuxa?”
Pe. – “A partir dos 20
anos completos e, se se trata de sacerdotes, até os 45”.
Eu – “Entram mais jovens,
ou são os velhos os que optam pela vida cartusiana?”
Pe. – “Desde os tempos da
fundação é um fato comprovado que são mais os jovens os
chamados”
Eu – “Qual a maior
dificuldade que encontra um jovem de hoje quando entra ou pedem entrar
na Cartuxa?”
Pe. – “Depende. Cada homem
é um mundo, o “microcosmos” que dizia São Gregório, e não há
dois iguais. O que para um é
fácil, para outro é difícil. No entanto, uma coisa é certa: os jovens de hoje
têm muitas coisas a que
renunciar, que em passadas gerações não existiam e, por isso mesmo, devem
armar-se de generosidade quando
se decidem entregar-se a Deus por completo na vida contemplativa.
Mais um trabalho destes tempos”.
Eu – “Em que acha o Sr.
Padre que consiste principalmente esse trabalho?”
Pe. – “Trabalho para
discernir o caminho de Deus no meio das vozes dum mundo paganizado;
trabalho da vontade para romper
com o comodismo reinante; e trabalho e coragem para dizer SIM! a
Deus. Mas, pouco mais ou menos,
sempre foi assim. Fazer-se monge não é lançar-se num mar de
rosas...!”
Eu – “Então, é meter-se
num silvado?”
Pe. – “Também não. O monge
entrega-se a Deus e Deus é Sempre um Pai. Só que amar e servir
a esse Pai tem as suas
exigências.
Eu – “Por exemplo”.
Pe. – “Renunciar a todas
essas conivências que temos com os inimigos da alma, mundo,
demônio e carne, apesar de ser...
inimigos”.
Eu – “Ouvi dizer e li que,
antigamente, o demônio tentava os monges com ruídos e figuras de
animais selvagens, etc. Também
tenta assim os monges de agora?
Pe. – “O demônio é um bom
militar e ataca a cada um pelo seu fraco. Se os antigos eram
tentados com ruídos de feras, os
novos monges serão tentados com agradáveis músicas e figuras mais
prazenteiras...”
Eu – “É fácil ser
cartuxo?”
Pe. – “Quando Deus chama,
dá a sua graça e com a graça de Deus o homem é capaz de tudo.
Com um pouco de amor de Deus tudo
se torna realizável”.
Eu – “Qual o processo para
entrar na Ordem Cartusiana?”
Pe. – “Sentida a vocação,
o melhor é entrar em contato com o Pe. Prior de algum mosteiro
cartusiano, depois será
preciso...”
... Aqui acabou a fita. Não quis
mexer no gravador, porque penso que o Sr. Padre não reparou que
ficou funcionando após as
palavras dirigidas ao meu pai.
Como era já tarde, findamos nossa
conversa. Mostrou-me a sua cela. A única coisa moderna que vi
foi a máquina de escrever. Como é
professor, tem de fazer apontamentos e explicações para os alunos.
Acompanhou-me até a hospedaria.
Despedimo-nos e ficamos muito amigos. Gostei imensamente
da conversa tida com este “GURU”
cartusiano. Se estas impressões chegam a suas mãos, peço desde
aqui perdão pelo meu “roubo de
notícias” e proponho não mais roubar aos cartuxos...
Por volta das 19h serviram-me a
ceia cartusiana. Este foi o menu de hoje: Omelete, um prato de
alface, frutas e um copo de
leite.
Retirei-me para o meu quarto. No
leito estive pensando bastante tempo sobre o que tinha visto,
ouvido e vivido neste dia. Não é
uma vida rara nem estanha nem inumana. Sim uma existência
ordenada, recolhida e austera,
que cada um escolhe livremente por isso que chamamos “vocação”.
Deve ser, como me dizia o meu
“Guru”, porque o amor de Deus dê forças. É por isso que realizam um
ideal; vivem a verdadeira
felicidade neste mundo –impossível de ter sem Deus–; e procuram o melhor
de todos os êxitos: realizar-se
segundo os planos de Deus. Estamos neste mundo para... Fiquei
adormecido... Ouço as baladas da
meia-noite. E a seguir os três golpes na porta do meu quarto... Um
novo dia na Cartuxa...
DUAS PERGUNTAS
Pela manhã acordei preocupado. Na
minha entrevista com o meu
bom “Guru” cartuxo, esqueci-me
ou, melhor, faltou-me tempo e fita
para formular duas perguntas,
cuja resposta me interessavam. Mas, que
fazer agora? Voltar à sua cela,
impossível. Pedir ao Pe. Prior mais um
favor, parecia-me abuso
imperdoável. Não me resignava a ficar sem
essas respostas. Pensei... Só
encontrei uma saída. Escrevi num papel as
minhas perguntas:
1ª. – “Sr. Padre, por que
se fez cartuxo?”
2ª. – “Que pensa o Sr.
Padre sobre a morte?”
E parti para o claustro, disposto
a entregar o meu importante papelzinho ao primeiro monge que
encontrasse.
Aos 5 minutos vejo aproximar-se
um monge, relativamente jovem. Parei-o e disse-lhe: “Sr. Padre,
teria a bondade de responder por
escrito a estas duas perguntas? Se pode e quer fazê-lo, deixe-me, por
favor, a resposta no meu quarto,
número 3 da hospedaria, antes de amanhã. Obrigado!”
Ele não me disse nada. Sorriu.
Tomou o papel e prosseguiu o seu caminho. Eu, depois do realizado,
fiquei um pouco intranquilo
pensando: E se o monge comunica o caso ao Pe. Prior? E se este se
incomoda com a minha intromissão?
E se... Mas, já está feito. Seja o que Deus quiser!
Eram as 10h da manhã quando
entreguei ao Padre o meu questionário. Às 11h tinha-o já no meu
quarto, sobre a mesa de trabalho.
Graças a Deus!... com Aleluia!
Copio literalmente o conteúdo:
“1ª. – Por que me fiz cartuxo?
Para responder a esta pergunta seriam precisas muitas páginas,
para permitir-lhe ler no livro da
minha vida, cuja leitura concedemos a poucas pessoas. No entanto,
para não defraudar por completo a
sua curiosidade jornalística, posso resumir tudo nestas linhas: Fizme
cartuxo, para realizar melhor e
de uma vez para sempre as ânsias de doação, de entrega, de
consagração plena ao Senhor,
dando ao coração um objeto infinito para amar. Porque, quando Deus
chama, o melhor de tudo é
responder-lhe. E quando nos pede algo, embora esse “algo” seja o nosso
pobre coração, é ótimo dar-lhe o
que nos pede. Ninguém melhor do que Ele conhece a pequenez dos
nossos dons e sabe o que reclama
para Si. Mas, amar é dar-se com alegria... Não sei se entenderá;
porém, fui sincero”.
“2ª. – Que penso sobre a
morte? “Os cartuxos são chamados “filhos da ressurreição”. Por isso,
só à luz dessa definição pode
conceber-se a ideia que o monge tem sobre a morte. Se a ressurreição é
plenitude de vida, vida perene,
sem ocasos, sem declives, salta à vista –e penso não estarmos
enganados– que a morte é para o
cartuxo o que na realidade deve ser para todo o cristão: a passagem à
vida definitiva, a última fase da
nossa existência terrena, a mudança para um estado melhor; é sobretudo,
cair para sempre nos braços do
nosso Pai; o encontro com esse Deus, objetivo da nossa procura e do
nosso amor. Que sinto à medida
que me aproximo desse momento cume? Algo indefinível, mas que
deve ser semelhante ao influxo
que o ímã exerce sobre o ferro, ou a atração elétrica ou, melhor ainda, a
esse ímpeto com que a criança
lança-se para o pai, que a chama e espera com os braços abertos.
Desculpe-me se não soube
explicar-me melhor. Para muitas coisas, o silêncio é a melhor resposta. Deus
o abençoe!”
As respostas deste jovem monge
não precisam de esclarecimentos nem de comentários. Elas dizem
tudo. Fiquei sabendo o que
desejava: Estão os monges na Cartuxa porque amam a Deus e esperam
tranquilos e alegres o encontro
definitivo com esse Pai tão amado.
O MONUMENTO DO IX CENTENÁRIO
Perguntei ao Pe. Prior que é que
pensam fazer os cartuxos, a nível de Ordem, para comemorar este
IX Centenário da sua fundação.
Disse-me que tencionam levantar
um “monumento”. Mas um “monumento com pedras vivas”. E,
perante a minha estranheza,
explica-me a seguir. O Capítulo Geral do passado ano aprovou a fundação
do que será, se Deus quiser, o
primeiro mosteiro cartusiano da América Latina. Foi a resposta à
insistente petição que haviam
formulado os Bispos do Brasil, através do Bispo de Santa Maria, Dom
Ivo Lorscheiter, Presidente da
Conferência Episcopal. Este será o “monumento do IX Centenário da
Fundação Cartusiana. Será uma
fundação pobre e simples. Para tanto, já estão nomeados quatro
monges: dois sacerdotes e dois
não-sacerdotes; os primeiros franceses e alemães os segundos.
E eu ponho-me a pensar em certas
circunstâncias:
Celebra-se o IX Centenário da
fundação da Ordem, com a fundação dum novo mosteiro.
É escolhido, providencialmente, o
Brasil, chamado “Terra da Santa Cruz”, e que ostenta no seu
escudo nacional o “Cruzeiro do
Sul”, ou seja, a CRUZ que brilha no céu desde o dia da Criação...
E a Ordem Cartusiana parece ser
também “domínio da Santa Cruz”, pois tem no seu brasão uma
Cruz dominando o mundo e coroada
de sete estrelas. Estas são o símbolo dos sete primeiros cartuxos,
que iniciaram a Família
Cartusiana na Igreja, e dos cartuxos de todos os tempos, sempre “servidores”
da Cruz. O escudo cartusiano tem
esta legenda:” Enquanto o mundo dá voltas, a Cruz permanece
estável”. Como dizendo, tudo muda
no mundo, mas a Cruz supera todas as mudanças. E com a Cruz,
os seguidores do Senhor da Cruz.
Os iniciadores da vida cartusiana
no Brasil parecem ser uma representação das “pátrias” do
Fundador, São Bruno: Dois monges
alemães, representantes da sua terra natal; dois monges franceses
representam a França, onde viveu,
ensinou e fundou a Ordem; o Superior da nova fundação é o Pe.
Prior da Cartuxa da Calábria, na
Itália, o segundo mosteiro fundado por São Bruno e lugar onde
repousam as suas santas
relíquias.
Dir-se-ia que São Bruno, estende
a vida cartusiana ao hemisfério Sul, ao Novo Mundo, através destes
filhos e depois de nove séculos
de existência. É a vida que continua a dar a vida. As quatro estrelas do
Cruzeiro do Sul são
correspondidas com estas quatro estrelas do brasão cartusiano.
E assim, enquanto o nosso mundo
gira sem cessar e ver passar gerações, instituições e
acontecimentos de toda a espécie,
a Cruz de Cristo permanece estável e derrama sobre o atormentado
mundo o suave influxo de umas
brancas estrelas, sempre fixas em redor da Cruz.
Não sei em que parte da Escritura
li isto: “As estrelas, alegres, brilham em seus postos; chamou-as e
responderam: “Aqui estamos!”, e
com prazer cintilaram para o seu Criador”.
E lembrei-me disso agora, com as
estrelas cartusianas...
Tudo finda neste mundo.
Passaram velozes os dois dias
vividos na Cartuxa.
Ficam aqui algumas “impressões”;
outras, mais profundas, ficarão no fundo da alma, penso que
para toda a vida.
Agradeço desde aqui, mais uma
vez, a cartusiana hospitalidade que me brindaram e as múltiplas
atenções que me prodigalizaram os
moradores desse “paraíso branco”.
Por certo que, quando me despedi
dos PP. Prior e Procurador, pedi-lhes perdão por ter comido,
sem licença, do fruto da árvore
do “meu jardim”. “Parta tranquilo, disse-me o Pe. Prior, porque este
“paraíso” não é o “Paraíso
terreal”, nem o fruto que você comeu é o “fruto proibido”. Portanto, o seu
“pecado” não terá consequências
na sua descendência”. “Amém!”, respondi eu.
Todas as despedidas são tristes.
Senti-me muito bem nestes dois dias. Tomei carinho a gente tão
boa e gentil. O coração ficava
cheio de saudades...
E quando me afastava dos vetustos
muros que me deram albergue por dois dias, lembrava uns
versos dum poeta cartuxo,
professo deste mosteiro, que li e copiei nestes dias. Ofereço-os como
despedida:
“Feliz aquele que, sem temer
mudança,
o tempo e a morte sobrepuja,
e da sua guerra logra a
vitória.
Feliz aquele que neste vale
alcança
a doce solidão desta Cartuxa,
fora do mundo e sua pintada
glória;
que, posta noutra eterna a
memória,
começa já a gozar do que lhe
espera
e saboreia aqui do suspirado
fruto;
e ao pagar o tributo e ao pôr
fim ditoso à carreira,
sem temor nem receio,
passa viver dum céu em outro
céu”.
(Dom Diego de Funes. “Canção
real à dita da vocação cartusiana”).
LAUS DEO
VIRGINIQUE MATRI
Melhor relato nao existe que bencao viva sao bruno viva a cartuxa
ResponderExcluirParabéns pela pequena, equilibrada e católica epopéia. Expressamos e somos aquilo que nosso coração está cheio! Stat Crux dum volvitur orbis!
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