
Esta questão move hoje muitas
pessoas. A nossa cultura virada para o divertimento não pretende mais nada do
que viver e viver depressa e de preferência com condições agradáveis. Mas a
resposta que as pessoas dão hoje à questão da vida é frequentemente uma fraca
ajuda para viver realmente. A vida gasta-se depressa quando queremos ter tudo
de imediato. E torna-se a qualquer momento demasiado barata, quando tudo é de
fácil acesso. A fixação em nos divertirmos arruína o divertimento. Ele torna-se
vazio e, com o tempo, aborrecido. Ele não preenche o desejo dos homens. O homem
torna-se objeto de animação.
São Bento dá a resposta à questão
do prazer de viver com o versículo de um salmo: «Se queres ter uma vida
verdadeira e eterna, guarda a tua língua do mal e os teus lábios das palavras
mentirosas! Desvia-te do mal e faz o bem; procura a paz e segue-a! Se fizerdes
isso, os meus olhos olharão para vós e os meus ouvidos ouvirão as vossas
preces; e antes de chamarem por mim, digo-vos Eu: olhai, Eu estou aqui».
O prazer de viver não significa
apenas a procura da satisfação pessoal. Para experimentar o prazer de viver, eu
preciso de disciplina. Eu tenho de aprender a arte da vida. E ela implica ter
contenção nas palavras, na língua. A língua corresponde aqui a cada declaração
que se faz.
Jesus diz: «Nada do que vem de
fora para o Homem o pode tornar impuro; só aquilo que sai do Homem é que o torna
impuro» (Mc 7,15). Temos de prestar atenção ao que está em nós. Não devemos
deixá-lo à solta. É preciso lutar para transformar o nosso interior, para que
aquilo que nós dizemos e fazemos sirva a vida em vez de a destruir.
Quem procura a vida deve evitar o
mal, afastar-se dos maus e fazer o bem. O mal prejudica a vida, uma vez que
possui o homem. Mal é tudo o que é despropositado, contrário à natureza,
destrutivo e desconcertante. Disso o homem deve afastar-se. Em latim diz-se: «deverte
a malo»Trata-se de retrocesso, afastamento e abandono. É condição para nos
virarmos para o bem e para o realizarmos. Não na medida em que eu procuro
continuamente aquilo que me faz bem, mas na medida em que eu faço o bem,
experimento a vida. Na realização do bem torno-me vivo. E, nesse caso, a vida
floresce em mim.
São Bento vê outro pressuposto
para procurar e perseguir a paz (sequere, em latim). O monge
deve procurar em todo o lado a presença da paz. O que é que está ao serviço da
paz? Estou em paz comigo mesmo, com a criação, com as pessoas? Que recompensa
tenho eu por espalhar a paz?
O monge deve estar atento a tudo
o que conduza à paz. Quando ele espalha a paz à sua volta, então experimenta a
vida. Ele semeia a paz neste mundo. A sua vida torna-se importante para este
mundo. Então - como diz São Bento - sentirá à sua volta a presença amorosa e
tranquilizadora de Deus. A resposta de Deus com a sua proximidade purificadora
e tranquilizadora será para ele uma experiência real de vida. Rodeado pelo amor
de Deus, terá prazer na vida.
São Bento encerra o seu convite
para a arte da vida com esta frase: «Querido irmão, o que nos poderá dar mais
satisfação do que a palavra de Deus, que nos convida? Vede: na sua bondade,
Deus mostra-nos o caminho da vida».
Hoje em dia, há um grande desejo
de viver, sobretudo por parte dos jovens. Eles querem experimentar a vida a
todo o custo. Mas, muitas vezes, confundem vida com vivência. Eles pensam que o
recheio da vida está no facto de terem muitas vivências. São Bento remete-nos
para o Senhor que nos mostra o caminho da vida e o caminho para a vida. O
evangelista Lucas descreveu Jesus como o líder e o instigador da vida. Ele
precede-nos no caminho da vida. Se o seguirmos, experimentamos o que a vida é
na realidade.
São Bento escolhe aqui, de novo,
a palavra «dulcis = doce». Significa sempre a experiência
interior, na tradição espiritual. A palavra do Senhor deixa-nos um gosto doce e
agradável. Quem recebe em si a palavra de Deus, experimenta um novo sabor na
vida. Tudo é doce.
A vida não está dependente da
quantidade das vivências, mas da sua qualidade. A arte da vida implica viver
cada momento, estar atento a si próprio, estar em sintonia consigo e com o
mundo, compreender com todos os sentidos. Quando estou de posse dos meus
sentidos, experimento tudo o que vem ter comigo de uma forma intensa. Então
vejo em tudo o segredo, vejo em todas as coisas o Deus invisível. Quando ouço
plenamente, ouço o que é inaudível.
A vida não é, antes de mais,
consumir, mas percecionar, sentir, provar e saborear. Não é a quantidade de
coisas que eu tomo para mim que decidem se eu vivo realmente, mas o modo como
eu perceciono e experimento aquilo que me é oferecido. Tem a ver, sobretudo,
com a intensidade da vida. E essa precisa de sossego, serenidade, liberdade,
admiração, entrega àquilo que verdadeiramente é importante.
Logo no prólogo, São Bento
remete-nos para a palavra da Sagrada Escritura, para nos mostrar o caminho da
vida. Juntamente com os salmos, ele cita as palavras que encerram o Sermão da
Montanha, como sendo o verdadeiro caminho da vida: «Todo aquele que ouve as
minhas palavras e as põe em prática pode comparar-se ao homem sensato que
construiu a sua casa sobre a rocha. Caiu muita chuva, vieram as cheias e os
ventos sopraram com força contra aquela casa. Mas ela não caiu, porque os seus
alicerces estavam assentes na rocha» (Mt 7,24).
São Bento está convencido de que
a palavra de Jesus nos abre o caminho para a vida. A Igreja primitiva via no
Sermão da Montanha um resumo dos ensinamentos de Jesus. Quem segue o Sermão da
Montanha encontra a verdadeira vida. O Sermão da Montanha é uma interpretação
do Pai-Nosso. O Pai-Nosso está precisamente no centro do Sermão da Montanha. E
os parágrafos do Sermão correspondem às preces do Pai-nosso.
O novo comportamento, que Jesus
nos põe diante dos olhos, nasce da oração. Jesus não apresenta nenhuns
princípios morais. Ele mostra-nos como a pessoa pode viver muito mais quando
vive a partir da experiência da oração. O comportamento brota da oração. E, por
sua vez, a nossa oração não é algo sem compromisso. Arrasta para novas formas
de comportamento.
A expressão beneditina «ora
et labora» tem o seu fundamento no Sermão da Montanha. No Pai-Nosso
ficamos a saber que somos filhas e filhos de Deus. Enquanto filhas e filhos de
Deus lidaremos de forma diferente com as nossas necessidades e com as nossas
emoções. No Sermão da Montanha, Jesus dá-nos conselhos para uma vida que sara
as feridas que dilaceram a sociedade. Para São Bento, o Sermão da Montanha é o
caminho para uma convivência pacífica em sociedade. É a fonte da paz para este
mundo.
A parábola da casa na rocha é
utilizada num sermão de João Crisóstomo, como prova da sua tese: «Ninguém te
pode magoar a não ser tu mesmo.» Aquele que constrói a sua casa na rocha não
pode ser prejudicado pelas tormentas interiores e exteriores. As tormentas de
emoções que correm para ele não o magoam. As pessoas que lutam contra ele, que
o difamam, que intrigam contra ele, não têm qualquer poder sobre ele. A sua
casa permanece de pé.
O seu fundamento não está em ser
amado pelos homens, mas por Cristo. Numa comunidade acabamos sempre por ser
magoados. Aí, temos por vezes a sensação de que estamos num pântano de emoções,
numa maré de agressões reprimidas e de necessidades oprimidas. Muitos sucumbem
a esta maré. Jesus está convencido de que as tormentas e marés não nos podem
fazer mal se nós tivermos construído a nossa casa na rocha das suas palavras.
As emoções que correm para nós,
remetem-nos sempre para o fundamento da nossa vida. Elas desafiam-nos a ver o
nosso fundamento, não nos sentimentos nem nas relações, nem nas estruturas ou
no desempenho, mas em Deus. Só então sobreviveremos, sem danos, à maré cheia.
Com a parábola da casa construída
na rocha, São Bento remete-nos para o verdadeiro fundamento da nossa vida. É o
próprio Cristo. Quando construímos a nossa casa em Cristo, encontramos o
caminho para a verdadeira vida, então aprendemos a ter prazer na vida, sempre e
em todo o lado, mesmo nas tormentas que nos assaltam, mesmo nas marés de
emoções que se abatem sobre nós diariamente. Cristo, como fundamento da casa da
nossa vida, oferece-nos segurança e liberdade, tranquilidade e serenidade, em
todos os contratempos da vida.
Uma condição decisiva para
experimentarmos realmente a vida é que não nos magoemos continuamente. Há
muitos que tornam a sua vida difícil, porque se deixam sempre magoar ou porque
se magoam a si mesmos. Eles desvalorizam-se, sentenciam-se, culpabilizam-se,
procuram em si mesmos a razão de cada conflito que acontece. Ou então deixam-se
magoar pelos outros, permitindo que tenham demasiado poder sobre eles.
Tornam-se completamente dependentes das doações de uma pessoa.
Quando vejo numa outra pessoa a
minha salvação ou a minha cura estou a magoar-me a mim mesmo. Pois nenhuma
pessoa pode corresponder a estas expectativas. Apenas Cristo é o meu Salvador e
em mais ninguém eu devo projetar as minhas esperanças.
João Crisóstomo pensa que não são
as pessoas que nos magoam mas a ideia que fazemos delas. Quando eu identifico
uma pessoa com uma imagem arquetípica, como por exemplo com a imagem do
salvador, do purificador, do auxiliador, tenho uma representação falsa dessa
pessoa. Vejo nela coisas que só pertencem a Deus. Com esta visão quase
religiosa das pessoas, acabo por me magoar. Pois as pessoas nunca
corresponderão às minhas imagens, à ideia que eu faço delas.
Jesus convida-nos a vermo-nos
corretamente e a vermos os outros corretamente. Mas só me posso ver
corretamente, a mim e aos outros, quando tenho o meu fundamento em Cristo,
quando coloco toda a minha esperança em Cristo e espero dele purificação e
vida.
São Bento não deseja impor nada
duro e difícil aos monges. Quando a vida numa comunidade monástica parece por
vezes dura, então ele encoraja: «Não te deixes perturbar pelo medo e não fujas
do caminho da purificação; no início ele pode parecer estreito. Mas quem
progride na vida monástica e na fé, verá o seu coração tornar-se largo,
enquanto percorre o caminho dos mandamentos de Deus na alegria indizível do amor».
O caminho da purificação, no qual
nos tornamos puros e completos, está em conformidade com «o caminho estreito»
de que falava Jesus (Mt 7,13). O caminho largo é o caminho que todos percorrem.
O caminho estreito é o caminho em que eu vivo todas as minhas vocações
pessoais, em que vou crescendo na imagem que Deus pensou para mim. Para
encontrar o meu próprio caminho tenho de atravessar a porta estreita que me foi
destinada para chegar à plenitude.
Franz Kafka conta a história de
um homem que queria atravessar os portões de um castelo. Mas o porteiro
impedia-o. Ele esperou diante da porta até ficar velho e doente. Quando estava
a morrer, o porteiro fechou o portão dizendo: «Este portão era destinado só a
ti.»
Há muitas pessoas que, durante
toda a sua vida, não atravessam a porta que as conduz à vida. Preferem outras.
Ou então têm medo de atravessar a porta estreita. Elas receiam os esforços, o
ter de incomodar o porteiro até que ele as deixe passar. A porta estreita não é
a porta do trabalho, mas a porta que está destinada só para mim. Para
atravessar esta porta preciso de me desfazer das ilusões que fiz de mim.
O caminho espiritual, como São
Bento o entende, liberta-me de todo o lastro que eu transporto comigo, para
poder entrar pela porta estreita para o caminho da purificação, o caminho que
me conduz à pureza, o caminho no qual eu me tomo eu próprio. Este caminho
conduz-me à plenitude.
São Bento adota a imagem do
coração grande dos Padres da Igreja. Ambrósio pensa que apenas o coração grande
oferece espaço a Deus para lá morar. E Cassiano está convencido de que apenas
um coração grande pode alcançar a serenidade e encontrar a paz interior.
A pessoa com um coração pequeno
toma-se cobarde e impaciente. Quando a cascata de agressões e depressões correm
para o coração pequeno, ele é inundado por elas. Quando o coração se tornou
grande através do amor, as marés de emoções rapidamente fenecem nele. Só um
coração grande pode experimentar a abundância da vida. Um coração pequeno é
demasiado estreito para a riqueza da vida. Fechar-se-á com medo das normas de
conduta, em vez de se entregar à vida.
Santo Agostinho fala do amor e da
alegria que toma o coração grande. São Bento encontrou a expressão do coração
grande certamente no Salmo 119,32. São Bento gosta deste salmo. Quem reflete
sobre os mandamentos de Deus, quem medita no amor de Deus, verá que o seu
coração se torna grande. Quem realmente experimentou Deus, recebe um coração
grande. O coração grande é sinal de verdadeira espiritualidade.
A grandeza de São Bento seria
hoje benéfica para a nossa Igreja. No seu seio, experimenta-se hoje muita
pequenez e medo. Os bispos têm medo que os cristãos façam meditação segundo
padrões orientais e têm dificuldade em dialogar com outras religiões.
Muitas das discussões da Igreja
desenrolam-se em volta de temas laterais, de problemas de estrutura, de leis e
de rubricas sobre como celebrar um serviço religioso. Em tais discussões sinto
a falta da grandeza da espiritualidade. As pessoas espirituais são sempre
grandes pessoas. Elas pensam no modo como devem continuar o caminho da
humanidade, nas questões mais importantes do nosso tempo e em como podemos
responder-lhes, em sintonia com Cristo. Um coração grande é terreno fecundo
para discussões. Trata-se da vida, do essencial. De que forma é que a vida vale
a pena? Como podemos viver no mundo uns com os outros em clima de dignidade e
atenção? De que bagagem necessitamos para percorrer o caminho do terceiro
milénio?
O coração grande é uma condição
para a experiência da vida verdadeira. A outra marca é a alegria indizível do
amor. Em latim está escrito: «inenarrabili dilectionis dulcedine =
a indescritível doçura do amor» O amor tem um gosto doce. Em alemão a palavra
doce (süß) perdeu o seu sentido. «Dulcedo» é
para os latinos o mesmo que amor. O amor é doce. Tem um sabor doce. Os latinos
sabiam que o amor ao homem empresta outro sabor, ao contrário do ódio que faz o
homem amargo. Para os latinos, a sabedoria está no sabor (Sapientia). Quem
saboreia a essência, é sábio. Quem ama sente um sabor doce e agradável, um
sabor amoroso. Quem ama saboreia a vida. Na tradição espiritual, a «dulcedo
Dei = A doçura de Deus» desempenha um papel importante.
A experiência de Deus deixa no
homem um sabor doce. A«dulcedo Dei» relaciona-se sempre com a
experiência interior de Deus nos próprios corações. Deus não é o sentimento.
Mas deixa os seus vestígios no sentimento. Não conseguimos ver Deus, mas
podemos saboreá-lo. O sabor doce é a experiência mais profunda de Deus que nos
é possível.
Para o papa São Gregório Magno, a
doçura interior é fruto da contemplação. Ele diz que a alma não existe sem
alegria. A alegria indestrutível é a alegria espiritual. Na contemplação, a
alma é penetrada por uma doçura inenarrável. São Bento entende esta doçura i da
experiência de Deus, quando se refere à inenarrável«dulcedo» do
amor.
Os Padres da Igreja veem a
transformação da água salgada em água doce como uma imagem da ação de Jesus
Cristo (cf. Ex 15,22-25). O tronco que Moisés atira à água salgada é para os
Padres da Igreja um símbolo da cruz. Cristo transformou toda a amargura deste
mundo em doçura. Na cruz, Cristo amou-nos até à perfeição. Este amor que tudo
abrange transforma a nossa amargura num gosto doce e agradável.
Através do encontro com Cristo, o
nosso sentimento de vida transforma-se. Os sentimentos venenosos dissolvem-se.
A vida não tem sempre um sabor amargo, mas doce. Santo Agostinho encontrou esta
experiência no versículo do salmo «Quam magna multitudo dulcedinis
tuae, domine[Quão grande é a tua doçura, Senhor]» (Salmo 31[30],20
segundo a tradução da Vulgata). Este doce sabor da vida já não pode ser
expresso em palavras. Mas todo o nosso desejo vai na direção deste doce sabor
do amor. É aí que reside a vida.
O caminho para esta glória do
amor passa, para São Bento, pelos mandamentos de Deus, pelas instruções do
Senhor. Mas não é um caminho penoso, é um passeio. Quem saboreou a vida,
percorre calmamente o seu caminho, tudo lhe vai ter à mão.
Para as muitas promessas de
qualidade de vida e de abundância, que hoje encontramos por todo o lado, São
Bento podia mostrar-nos um caminho realizável para preenchermos o nosso desejo
de viver. Não é um caminho rápido e barato, mas um caminho que no início custa
algum esforço. Pois, neste caminho, temos de abandonar muitas ilusões. Temos de
aprender aquilo que é realmente vida. A vida é a capacidade de estar totalmente
em cada momento, é viver intensivamente. E viver está na grandeza do coração e
na doçura do amor. A vida tem sabor. Com um coração grande posso experimentar a
grandeza e a liberdade da vida. Mas o caminho para esta grandeza do coração
atravessa a estreiteza da ordem e da renúncia. Para poder saborear, tenho de
aprender a renunciar. Para me tornar grande, tenho de atravessar a estreiteza.
Só em alguém que está preparado para se ligar a uma comunidade concreta - seja
uma comunidade monástica limitada, seja o casamento e a família - é que o
coração se torna grande.
A verdadeira qualidade de vida
está em experimentar a grandeza do coração no meio da pequenez do dia a dia.
Quando eu percorro os conflitos diários e a pequenez que me rodeia, com este
grande coração, torno-me vivo e livre. E ninguém me pode tirar essa grandeza da
vida.
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