O rito cartuxo
“A Ordem Cartusiana, ou Ordem
Cartuxa, fundada por São Bruno, é uma das mais rigorosas da Igreja, e muitos
santos e beatos saíram de seus silenciosos claustros. Nem todos sabem, por
conta do sacro mistério que envolve esse instituto religioso tão importante
para a nossa vida espiritual, mas os cartuxos possuem um rito próprio para a
celebração de sua liturgia. O chamado rito cartuxo difere, pois, do romano,
quer em sua forma ordinária, quer na extraordinária - que com ele convivia nos
primórdios da Ordem. Basicamente, o rito cartuxo é um desenvolvimento do antigo
rito lionês, praticado na região francesa onde a primeira Cartuxa - assim se
chamam seus mosteiros - se instaurou. Alguns aspetos desse rito,
diferenciando-o do rito romano, serão por nós abordados no presente e
despretensioso artigo, que publicamos nesta semana em que celebramos a memória
de São Bruno, fundador da Ordem. A Missa conventual é sempre cantada. Antes da
mesma, como que formando parte do rito, há uma adoração do Santíssimo
Sacramento, diante do qual se canta a Ladainha de Todos os Santos, incluindo o
nome do fundador, São Bruno. Essa adoração se faz sem ostensório, dado que é um
objeto desconhecido da liturgia cartusiana. Durante a Missa, mesmo a cantada e
conventual, não há acólitos. Não há, como no rito romano tradicional, três
tipos básicos - rezada (simples), cantada e solene -, e sim apenas a privada
(rezada, simples), e a conventual (que é sempre cantada e solene). Na Missa
cantada, solene, conventual, o sacerdote celebrante é ajudado por um diácono,
mas sem subdiácono e, como dissemos, sem acólitos. A simplicidade é marca da
Ordem e se reflete também na liturgia. Não é uma Missa para o fausto e o
esplendor, ainda que eles sejam legítimos, e isso porque suas igrejas são
fechadas. Ninguém penetra na solidão da Cartuxa, nem para assistir Missa. O
Santo Sacrifício é parte de seu silêncio, de sua espiritualidade, misto de
cenóbio e eremitério... Pois bem, nessa Missa conventual, com diácono, há
diferenças para com o rito romano. O diácono, por exemplo, não usa dalmática
nem alva, cíngulo ou amito. Ele está trajado somente com o hábito religioso
cartuxo e uma túnica, sem qualquer paramento. Quando vai cantar o Evangelho, o
diácono põe uma estola por cima de seu hábito, retirando-a depois dessa
cerimônia. É uma tradição curiosa, bastante distinta de nossa liturgia romana a
que estamos acostumados. No Ofertório, sem a estola, o diácono, por cima do
hábito, veste uma espécie de véu umeral menor, chamado de syndon. Ele não
coloca o vinho no Cálice no Ofertório, nem o padre o faz, pois já foi feito no
início da Missa, como no rito dominicano e em ritos orientais. Ademais, no
Ofertório, as oblatas do pão e do vinho são cobertas com um corporal: não há
pala sobre o cálice, mas um corporal. O diácono só entra no presbitério quando
for desempenhar suas funções. Fora disso, permanece no coro.
O subdiácono também não fica no
presbitério, permanecendo no coro, de cujo meio, sem qualquer paramento,
revestindo-se apenas do hábito, canta a Epístola. Aliás, a igreja cartuxa tem
apenas coro e presbitério, sem nave, pois não há fiéis que não os monges. Nas
leituras, aliás, em certas festas, os cartuxos utilizam três leituras, como no
rito romano moderno. Aliás, também como no rito moderno, o cartusiano termina
com o "Ite, Missa est", e não como, no rito tridentino, com a bênção.
Isso parece demonstrar o costume medieval, antes da codificação de São Pio V, e
que foi retomado, sabiamente, pela comissão pós-conciliar que reformou a liturgia
romana. Durante a Comunhão, os monges recebem a Sagrada Eucaristia
exclusivamente consagrada naquela Missa a que assistem. A reserva eucarística
no tabernáculo, que contém apenas três hóstias pequenas, é para adoração e para
os monges enfermos que não podem assistir Missa conventual. Desse modo, nunca
se usam, para a Comunhão na Missa, as hóstias da reserva. Os monges comungam na
boca, mas permanecem de pé. Como também estão de pé durante a Consagração. É
comum a postura do celebrante in modum Crucifixi, como forma de salientar o
caráter sacrifical da Missa, atual e bem representativa do despojamento da
liturgia cartuxa. Durante a Missa, o sacerdote celebrante usa, por cima de seu
hábito, o amito, a alva, o cíngulo, o manípulo, a estola, que nunca é cruzada -
no que difere da forma extraordinária do rito romano -, e a casula. Quando está
na sede (cadeira), usa um gremial. A vestição dos paramentos é feita diante do
altar e não em uma sacristia, no que aproxima a Missa conventual cartuxa da
Missa pontifical romana. Os beijos cerimoniais são distintos de ambas as formas
do rito romano: o padre beija o altar apenas no início e no fim da Missa, bem
como no Credo cantado - na parte "Et homo factus est" -, no
Supplices, e antes de beijar o instrumentum pacis, caso o Abraço da Paz seja
distribuído entre os monges. Também se beija o Evangeliário, depois de cantar o
Evangelho e, ao contrário do rito tridentino, isso se dá mesmo nas Missas de
Réquiem. O Asperges, feito aos Domingos, como no rito romano, é cantado não
depois da Tércia e antes da Missa, mas antes mesmo da Tércia. Daí que a Missa
conventual diária tem, como preparação, a adoração ao Santíssimo, a ladainha, a
Tércia e a vestição; e a Missa conventual dominical, a adoração ao Santíssimo,
a ladainha, a vestição, o Asperges e a Tércia. O canto gregoriano cartuxo é bem
menos elaborado, em suas melodias, do que o romano e beneditino. Para o Kyrie,
por exemplo, há apenas três melodias, e para o Gloria somente duas. Falando em
Gloria, uma das frases está invertida, sem tomarmos por referência o rito
romano: em vez de "propter magnam gloriam tuam", o rito cartuxo traz
" p r o p t e r g l o r i a m t u a m m a g n a m " . O Confiteor é cantado em reto tom, ao
contrário do rito romano tradicional, em que é recitado - mas parecido com o
rito romano moderno, em que pode ser cantado, semelhantemente à Missa
Pontifical em qualquer das formas. Em vez de "mea culpa, mea culpa, mea
maxima culpa", o texto do Confiteor cartusiano dispõe, e apenas uma vez,
" m e a c u l p a p e r s u p e r b i a m " . Após o Confiteor, como
parte das Orações ao Pé do Altar, o sacerdote reza um Pater Noster e uma Ave-
maria.
A duplicidade de orações na Missa
cantada (enquanto o coro, diácono ou subdiácono cantam uma parte, o sacerdote
rezaria a mesma parte em vox submissa), característica das rubricas
tradicionais do rito romano, inexiste na liturgia cartusiana. Há diferenças,
enfim, no Calendário Litúrgico, nos Próprios e suas antífonas, no Lecionário,
nos sinais-da-cruz durante a Missa, e também na Liturgia das Horas. Desta
última, a mais característica, é que cada Ofício é rezado duas vezes: uma
conforme o dia, e outra, em seguida, tirada do Ofício da Bem-aventurada Virgem
Maria. Assim, há duas Laudes, duas Vésperas, duas Completas etc. Ademais, os
textos do Próprio, do Saltério e do Ordinário da Liturgia das Horas são
diferentes do disposto no Breviário Romano. Outra distinção, própria do rito, é
que nas profissões religiosas solenes das monjas cartuxas, elas são revestidas
de estola e de manípulo. No jubileu monástico, a religiosa cartuxa voltará a
usar esses paramentos, bem como quando for velada e enterrada. Alguns vêem
nessa prática um resquício da antiga cerimônia de instituição de diaconisas -
as quais, entretanto, não recebiam o sacramento da Ordem, sendo antepassadas
das religiosas de vida ativa. Após a Missa, o sacerdote celebrante se prostra
diante do altar, e faz sua ação de graças desse modo, durante quinze minutos.
São quinze minutos de prostração, com um significado penitencial profundíssimo.
Ainda na questão dos paramentos, o pluvial é desconhecido dos cartuxos. Enfim,
quem quiser, pode ler o texto, em latim, do O r d o M i s s a e cartuxo, que
pode ser baixado, em formato Word, aqui ii. A Missa privada é celebrada, por
cada padre, após ter assistido a Missa conventual, e é sempre combinada com a
hora canônica de Tércia. Cabe lembrar que, após a reforma de Paulo VI em
relação ao rito romano, o rito cartuxo também foi levemente modificado, a
partir de 1981. As três novas Orações Eucarísticas, por exemplo, podem hoje ser
usadas pelos cartuxos, porém apenas nas Missas "privadas", i.e.,
celebradas pelos padres do mosteiro com a presença de apenas um assistente ou
sem ninguém. A Missa conventual diária, celebrada normalmente pelo prior,
continua a usar apenas o Cânon Romano tradicional. Outra pequena modificação,
após o Vaticano II, foi a introdução de novos santos e festas no calendário. A
palavra "omissione" foi acrescida no Confiteor, como no rito romano
moderno.”
por: Victor Henriques
por: Victor Henriques
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