
Mas, tendo sido expulso Manassés, deliberou-se dar-lhe como sucessor o nosso Santo. Este, logo que o soube, ficou alarmado do projeto; fugiu secretamente, e tão bem se escondeu, que foi preciso escolher outro. O novo eleito foi Reinaldo de Bellay, tesoureiro da igreja de Tours.Alguns biógrafos modernos opinam que estas perturbações da igreja de Reims, juntas ao desgosto que inspirava ao nosso Santo tudo aquilo que no mundo mais lisongeia, foram o principal móbil do seu retiro a qualquer afastado deserto, para se ocupar somente do negócio importante da sua salvação. Mas é pouco verossímil que uma causa tão leve tenha tido um efeito tão surpreendente. Uma vida tão regular e tão inocente não teria sido seguida de uma penitência espantosa; uma tal resolução pois deveu ter outra coisa.

Durante a estada do nosso Santo em Paris, morreu um célebre doutor da Universidade, homem que passava por ser de reconhecida probidade e honesto, depois de se preparar com a recepção dos Santos Sacramentos. Tivera o seu corpo depósito na igreja. Quando se estava cantando o Ofício de corpo presente, ao chegarem à quarta lição que começa: Responde mihi, o cadáver levantou a cabeça do féretro e com voz lastimosa exclamou: Por justo juízo de Deus sou acusado: dito isto, tornou a repousar a cabeça, como dantes.
Apoderou-se de todos os assistentes um terror geral, e resolveram deixar para o outro dia os funerais. Neste dia foi muito maior a concorrência; recomeçou-se o Ofício, e ao chegar às mesmas palavras, tornou o cadáver a erguer a cabeça e a exclamar com voz esforçada e mais lastimosa: Por justo juízo de Deus estou julgado.
Subiu de repente o pasmo e o espanto. Resolveram diferir a inumação para o terceiro dia. Neste foi imenso o concurso; deu-se princípio ao Ofício; como nos precedentes; quando se cantavam as mesmas palavras, levantou o defunto a cabeça, e em voz horrível e espantosa exclamou: Não careço de orações; por justo juízo de Deus estou condenado ao fogo eterno.
É fácil compreender a impressão que faria nos ânimos um acontecimento tão extraordinário. Achava-se Bruno presente a este espetáculo; tão fortemente se emocionou com ele que, retirando-se todo horrorizado, resolveu deixar quanto tinha e enterrar-se em algum espantoso deserto para ali passar a vida entregue unicamente aos rigores da mortificação e da penitência. Parecia necessário um sucesso tão trágico para uma resolução tão generosa.
Estando nestes pensamentos, vieram visitá-lo seis amigos seus; logo que chegaram, disse-lhes o Santo com as lágrimas nos olhos: “Amigos, em que pensamos? Condenou-se um homem que na opinião de todos viveu cristãmente; quem pois poderá fiar-se seguramente no testemunho da sua consciência? Oh! Que formidáveis são os juízos de Deus! O morto não falou para si; a nós se dirigiu o aviso daquele espantoso milagre. Pelo que me toca tomei já o meu partido; resolvido estou a abandonar tudo para sempre: benefícios, empregos, rendas, tudo se acabou já para mim; vou sepultar-me vivo no deserto mais horroroso que encontrar, e aí passar a vida na amargura, na solidão e na penitência”. Movidos todos aqueles amigos do que acabavam de ouvir, protestaram que todos estavam no mesmo pensamento e na mesma resolução, prontos a segui-lo.
Chamavam-se Lauduíno, que depois de São Bruno foi o primeiro Prior da Grande Cartuxa; Estêvão de Bourg e Estêvão de Die, ambos Cônegos de S. Rufo em Valência do Delfinado; um Sacerdote, chamado Hugo, e dois leigos que se chamavam André e Guerino. Entraram a discorrer sobre qual deserto lhes conviria: os dois Cônegos de S. Rufo disseram que em seu país havia um santo Bispo, em cuja Diocese dispunha de muitos bosques, e sítios inacessíveis e penhascos; que não duvidavam do zelo e muita bondade que favorecia os seus intentos, caso recorressem a ele. Este santo Prelado era Hugo, Bispo de Grenoble, célebre por sua santidade, e um dos maiores Prelados do seu século. Aplaudiram todos este parecer.
Pedida por São Bruno a demissão da sua prebenda, e feita a renúncia de tudo, tomou o caminho do Delfinado com seus seis companheiros, lançou-se aos pés do santo Bispo de Grenoble, pedindo-lhe que se dignasse conceder aos sete um sítio ermo, aonde pudessem retirar-se. Lembrou-se então S. Hugo de um sonho que tivera na noite precedente, em que lhe pareceu ver o próprio Deus fabricando para Si um templo, em um deserto do seu Bispado chamado a Cartuxa, e que sete estrelas levantadas da terra em forma de círculo iam adiante do mesmo Bispo como para lhes mostrarem o caminho.
Mandou-os sentar a todos, e tendo-lhes perguntado qual o motivo de sua viagem, tomou a palavra São Bruno, e depois de lhe referir o prodigioso acontecimento de Paris, lhe suplicou fosse servido assinalar-lhes algum deserto, onde passassem a vida na penitência e retirados do comércio humano. Logo que S. Hugo ouviu a sua narração, referiu-lhes a visão que tinha tido, certo de que eram eles as sete estrelas misteriosas. Abraçou-os ternamente, louvou os seus generosos intentos, ofereceu-lhes o deserto da Cartuxa, descrevendo-o desta maneira: “Se buscais lugar inacessível aos homens, não achais outro menos pisado por pé humano; mas notai que é uma silenciosa solidão, cuja vista mete horror; é um conjunto de penhas escarpadas, cujos cimos sobem até se ir esconder no seio das nuvens. No inverno está todo coberto de espessos lençóis de neve, obumbrado por névoas perpétuas, sendo o frio por um lado insuportável, por outro interminável; numa palavra, é um lugar que até agora só o têm povoado as feras”.
Vendo que esta descrição longe de lhes esfriar o ardor, mais lhes despertava os brios, acrescentou: “Conheço claramente que Deus vos destina a esta horrorosa solidão; o mesmo Senhor vos dará as forças para nela vos manterdes”. Demorou-os alguns dias no paço, para que se restaurassem das fadigas do caminho; depois disto foi acompanhá-los até ao lugar de que os deixou de posse. Não contente de ceder-lhes todo o direito que a ele tinha, ofereceu-se para indenizar o dono de quaisquer pretensões que pudesse alegar, tudo para que nada os pudesse estorvar ou inquietar.
A primeira coisa de que trataram os solitários foi da edificação da capela em honra da Santíssima Virgem, e de umas celazinhas a pouca distância uma das outras, em um terreno que está no meio de três grandes penhascos, de cuja base brota uma pequena fonte, que ainda hoje chamam de S. Bruno, tudo perto da capela, que desde então é conhecida pelo nome de Santa Maria das Choças. Entraram estes anjos em carne humana a habitar aquele deserto, e a levar nele a vida mais austera que se tem visto na Igreja. Era dia de São João Batista, do ano 1084...
Fonte: Rev. Pe. Croiset, S.J., “Ano Cristão ou Devocionário para todos os dias do ano”, traduzido do francês, revisto e adaptado às últimas Reformas Litúrgicas pelo Rev. Pe. Matos Soares, Professor do Seminário do Porto, Vol. X, Dia 6 de Outubro – Festa de São Bruno, pp. 71-75; Tip. “Porto Médico”, Ltda, Porto, 1923.
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