Podemos entender o Deserto em
dois aspectos: como uma realidade física, buscada pelo homem ou como uma
realidade espiritual que toca toda a vida do homem, ao qual Deus parece
atrair-nos constantemente para uma forte experiência.
Nós nos deteremos neste segundo
Deserto, nesta segunda experiência que envolve um chamado de Deus a mergulhar
na obra de solidão e luta tão característica de uma autêntica experiência de
Deserto.
O deserto é uma obra de Deus,
para onde Ele dirige os seus eleitos: Ose 2, 16.
Podemos cair na tentação de
querer entender esta rica experiência de Deus como uma punição divina, o que
não corresponde a realidade, pois se Deus atrai os seus para o deserto é por
desejar que mergulhem em sua intimidade. É sinal do “Amor Terrível” de Deus
(Carlos Carreto) que atrai para que o homem possa exclamar : “Conhecia-te só de
ouvido, mas agora viram-te meus olhos…”, como o justo Jó (Jó 42, 5).
Os grandes homens de Deus nas
escrituras experimentaram desta obra em suas vidas, uma obra de purificação e
aproximação com Deus.
1. O DESERTO COMO SITUAÇÃO DE
VIDA
1.1 A Obra do Deserto:
qeou), não considerou o ser
“igual a Deus” como algo a apegar-se (arpagmo), mas despoja-se (ekenwse)… O deserto encerra sempre
uma obra de desinstalação, uma obra de “despojamento total de si” e encontro
com a Verdade… Podemos chamar esta obra de “kenwsis” (kénosis), ou seja, um
quebrantamento radical de si mesmo. Esta obra é descrita na carta aos Filipenses
2, 5__11. No texto bíblico o Apóstolo fala do mistério da encarnação: Cristo
modelo de humildade sendo de “condição divina” (morfh
Kénosis é um despojamento pleno,
ontológico e profundo. Esta palavra grega evoca uma ação de violência.
A Obra do deserto é de violência,
um chamado a lutar. O ambiente hostil do deserto pode muito refletir a ação de
Deus. Apenas os corajosos devem entrar no deserto. O próprio Jesus dá o
testemunho sobre os homens que serão encontrados no deserto ao falar de João
Batista (Mt 11, 7__14). Não são os de roupas finas ou caniços agitados pelo
vento, mas os violentos. Devemos aspirar pelo deserto com todas as nossas
forças, pois lá mergulhamos no coração de Deus e na misericórdia Divina, mas
sem esquecer que esta é uma obra que exige um esforço. Deus não atrai crianças
para o deserto, mas homens que possam lutar, e nos atrai para que despertemos
do orgulho e saiamos das garras do pecado, é uma obra sempre próxima à crise.
1.2 O Deserto Para o Povo de
Deus:
O Povo de Deus viveu momentos
maravilhosos no deserto, mesmo consciente que este sempre representou uma luta.
Na meditação do Povo de Deus sobre a sua experiência ao ser atraído ao deserto,
ele descobriu as maravilhas escondidas no ríspido ambiente hostil, que se
refletem muito bem na meditação dos profetas e demais escritores do Antigo
Testamento. Entre os muitos temas encontramos de maneira especial:
No deserto se afirma mais claramente
para o Povo a unicidade de Deus. É no deserto que o Povo eleito compreende
melhor a grandiosidade de Iahweh. No deserto o Povo eleito na encontra
referências diversas para expressar a sua segurança como fará ao entrar na
Terra Prometida depositando sobre ídolos a sua esperança de segurança. Só Deus
é a realidade que pode libertar no deserto, uma realidade imutável. Ao
estabelecer-se na Terra (sair do deserto), Israel confunde as várias forças com
divindades, enquanto ele encontrava-se preso à desolação mergulhava muito mais
no único Poderoso…
É o tempo da fidelidade! A
diferença entre o pecado do Povo no deserto e na terra prometida é
fundamentalmente diferente: no primeiro caso está uma não aceitação do Senhorio
de Iahweh e no segundo um recurso a outros deuses. No deserto o Povo rebela-se
muitas vezes contra o abandono que exige o deserto desejando ser Senhor da sua
própria vida, mas sempre consciente de Grande é o Senhor que o tirou do Egito.
Na terra este mesmo Povo perde-se em busca de outros deuses esquecendo-se de
Iahweh.
O deserto é ainda associado ao
inimigo que haveria de tombar dentro de uma primitiva cosmologia. Sinal assim
do transitório e do poder de Iahweh que deveria triunfar sobre tudo. Ao
contemplar a desolação própria do deserto a religião primitiva o associava às
forças contrárias à vida que vinha de Iahweh, logo Iahweh demonstrava seu poder
transformando em oásis o deserto…
Refletindo sobre o deserto o Povo
compreende que Deus o conduz para provar, mas que ele fora protegido e guardado
refletindo assim um tempo de graça… (cf. Deut 8). Este foi a maior descoberta
do Povo de eus, que o fez enxergar no deserto a mão misericordiosa do Senhor,
este mesmo sentimento foi transferido para o Exílio muitas vezes associado ao
deserto (cf. Dn 3).
1.3 O Combate no Deserto
a) O Combate de Jacó
Quem era Jacó?
“O Filho de Isaac tem um nome
que, segundo a etimologia popular hebraica (Gen 27, 36), é autêntico oráculo:
‘o Suplantador’…” (Estevão Bettencourt – Para entender o Antigo Testamento
158-161)
Jacó aplica sucessivos golpes que
lhe concedem o direito de primogenitura e as bênçãos que deveriam pertencer ao
seu irmão Esaú… Porém mesmo depois de conquistar o que tanto almejava com seus
golpes percebe que está em sério perigo e foge para abrigar no deserto com medo
de seu irmão. Lá tem o seu sonho onde Deus se mostra como aquele que cuida dele
(Gen 28, 16__22).
Após enriquecer com mais golpes e
ter a mulher que ama, Jacó resolve voltar, meio obrigado por causa de seus
golpes, e sabe da notícia que seu irmão vem ao seu encontro com 400 homens.
Isto é suficiente para levá-lo ao desespero e ele procura anda sustentar-se com
mais golpes.
Desolado ele busca a solidão, um
deserto interior profundo. Dessa forma Ele luta com Deus (Gen 32, 23__33).
O sentido do deserto de Jacó –
uma luta onde sua vitória está em submeter-se e reconhecer que só com Deus ele
pode vencer…
Deus nos conduz para o deserto
para que possamos combater.
Testemunho de Antão: “Antão
atravessa uma provação de obscuridade, durante a qual tem a impressão de ser
abandonado por Deus aos poderes demoníacos; não obstante persevera, porém na fé
mais nua e pura. Terminada a provação, uma visão luminosa do céu vem
consolá-lo. Então não consegue deixar de expressar esta queixa: Onde estavas?
Porque não te manifestaste desde o princípio para fazer cessares meus
sofrimentos? Mas a voz lhe respondeu: Eu estava aí Antão; eu esperava para
ver-te combater” (Vida de Antão – Sto Atanásio)
Como deve ser o nosso combate no
deserto?
Devemos lutar como Davi ao
enfrentar o gigante Golias…
1Sam 17. Davi se apresenta ao Rei
Saul e manifesta o seu zelo contra o Filisteu que insultou a Glória de Iahweh.
Sua confiança está fincada n’Aquele que deu força a sua destra para derrota o
leão e o urso e arrancar a ovelha de sua goela. Quando o rei lhe oferece a
vestimenta de combate Davi reconhece a sua situação e sabe do seu nada. Ele não
parte para enfrentar o gigante com a aparência do que não é, mas reconhecendo o
que de fato é e confiando no poder de Deus.
História fictícia do intervalo
entre o combate e a entrevista com Saul Þ Davi á beira do lago recolhendo as
pedras.
Ao vê-lo Golias zomba e Davi
lança o seu grande grito: ” Tu vens contra mim com espada, lança e escudo; eu,
porém, venho a ti em nome de Iahweh dos Exércitos, o Deus dos exércitos de
Israel que desafiaste. Hoje mesmo Iahweh te entregará na minha mão, eu te
derrubarei e te deceparei a cabeça, e darei o teu cadáver e os cadáveres dos
exército filisteu ás aves do céu e aos animais selvagens. Toda a terra saberá
que há um Deus em Israel, e toda esta assembléia conhecerá que não é pela
espada nem pela lança que Iahweh concede a vitória, porque Iahweh é o Senhor da
batalha e ele vos entregará nas nossas mãos”. (1Sam 17, 45__47).
b) O Exílio da Babilônia: Um
deserto de purificação.
O que foi o exílio para o Povo de
Israel?
A queda humilhante: “Embora
Jerusalém resistisse com tenacidade heróica até o verão seguinte, o seu destino
estava traçado. Sedecias queria capitular mas temia fazê-lo. Em julho de 587,
exatamente quando as reservas de alimento da cidade terminavam os babilônios
abriram brechas através das muralhas e se lançaram dentro da cidade. Com alguns
de seus soldados, Sedecias fugiu de noite para o Jordão, sem dúvida esperando
estar seguro, pelo menos temporariamente, em Amon. Mas foi levado para perto de
Jericó e conduzido diante de Nabucodonosor, em seu quartel-general de Rebla, no
centro da Síria. Não tiveram compaixão dele. Depois de fazê-lo testemunhar a
execução de seus filhos, cegaram-no e o levaram acorrentado à Babilônia, onde
ele morreu.
Um mês mais tarde, Nabuzaradan,
comandante da guarda de Nabucodonosor, chegou a Jerusalém e, cumprindo ordens,
pôs fogo à cidade e derrubou suas muralhas. Alguns dos oficiais eclesiásticos,
militares e civis e alguns cidadãos eminentes foram conduzidos diante de
Nabucodonosor, em Rebla, sendo ali executados, enquanto outro grupo da
população era deportado para a Babilônia. O Estado de Judá acabara para
sempre…” (J. Bright – História de Israel 445__446).
Este texto reflete a dureza da
queda para o Povo de Israel, podemos ainda mergulhar muito mais na ferida do
Povo ao lermos o livro das Lamentações. Esta humilhação foi necessária devido
ao pecado do povo que há muito deixara de ter um relacionamento profundo com o
seu Senhor confiando unicamente na sua condição de Povo eleito. A noção
dominante estava muito bem descrita pelo ditado que Jeremias e Ezequiel
condenam: “Os pais comeram uvas verdes e os dentes dos filhos apodreceram…”
Isto nada mais era do que uma negação do pecado de cada homem. O Exílio foi a
parte mais sofrida para história de Israel, porém é também a mais bela e mais
frutuosa. A própria Escritura conhece parte de sua forma com o Exílio. Para bem
entendermos o que foi o Exílio e seu efeito no coração do Povo tomemos a ação
de Jeremias, Ezequiel e do 2o Isaias, com estes livros podemos compreender
ainda melhor a riqueza do deserto como experiência de intimidade com Deus
mergulhando na nossa realidade de pecador.
a) A ação de Jeremias não adianta
confiar nas promessas.
b) O carro Divino de Ezequiel
Deus abandona o Templo e acompanha o Povo.
A mensagem de esperança de
Jeremias e Ezequiel: A Nova Aliança (Jer 31, 29__40; Eze 36,22__32).
Perspectiva individual.
c) A Ação do 2o Isaias (40__55)
“O Livro da Consolação”.
O início do livro em 40, 1__3 e o
seu final com 55.
A alegria do retorno: Salmos de
júbilo 126 e Isa 51, 11.
2. O DESERTO COMO TERRENO BUSCADO
2.1 O Deserto na Tradição da
Igreja:
Os primeiros Padres do deserto:
frutos da mudança de mentalidade provocada pelo Edito de Milão.
Perspectiva escatológica iminente
e o desejo de romper com o mundo: Este texto da igreja primitiva reflete muito
bem a mentalidade que assolava o mundo cristão de então:
“Um bispo, homem piedoso e
modesto, mas que tinha excessiva confiança em suas visões, tivera três sonho e
se pôs a profetizar: ‘Sabei, meus irmãos, que o juízo final ocorrerá em um ano.
Se o que vos digo não acontecer, não creiais mais nas escrituras e agi como vos
aprouver’. Ao cabo de um ano, nada aconteceu, ele ficou confuso, os irmãos
escandalizados, as virgens se casaram e os que tinham vendido todo os seus bens
foram reduzidos à mendicância”. (Padre do Deserto – Jacques Lacarrière. Texto
citado de S. Hipólito, bispo de Roma. III séc.).
O impacto que gerou a obra de
santo Atanásio: Vida de Antão.
Forte influência dos escritos de
S. Pacômio, grande organizador da vida cenobítica.
S. Jerônimo escreve Vida de Paulo
de Tebas e Vida de Malco, monge escravo difundindo o ideal monástico.
Grandes nomes se destacam neste
período: Gregório Nisseno, Gregório Nazianzeno, Basílio, Agostinho, Jerônimo,
Atanásio, etc…
O ideal monástico era baseado na
busca do deserto como sinal da luta e do abandono de todas as coisas. Neste
período o deserto assume também forte caráter de transitoriedade, os homens que
vão ao deserto continuam a participar ativamente da igreja e ajuntam muitos ao
seu redor. O que ocorria mesmo com dendritas e estilitas…
Bento organiza uma regra muito
simples e de grande precisão o que concede grande impulso às comunidades
monacais de seu tempo. O ideal monástico dilata-se ainda mais com o pontificado
de Gregório Magno, de origem beneditina, ele prestigia e difunde os mosteiros
beneditinos por toda a Igreja.
Na idade média o mosteiro de
Cluny engrandece anda mais o ideal monástico com as reformas dos Cartuxos e
Trapistas. Destaca-se por este período S. Bernardo de Claraval…
Após um período mais afastado o
tema do deserto retorna em nosso tempo com o forte impulso dos estudos do
cristianismo primitivo (patrística) e o reflorescimento do monaquismo.
Estaca-se a vida do irmão Charles de Fulcould, que viveu toda sua vida no ideal
do deserto. Após sua morte perpetuaram o seu estilo de vida os irmãos de Jesus.
2.2 Espiritualidade do Deserto:
Dinâmica do Provisório:
“O deserto nada tem a ver com uma
mística de fuga dos homens… Considerando a história dos crentes, é preciso
incutir com energia este aspecto provisório do deserto. Se houve erros e
desvios na interpretação do deserto bíblico, eles se acham presentes e tem se
deixado perceber sempre que se quis fazer do deserto a situação definitiva e
duradoura do crente. O cristão é destinado à comunidade, à Igreja, a sociedade
dos homens. Deve caminhar algum tempo pelo deserto, a fim de se preparar para a
missão, para o contato com os outros”. (Enzo Bianchi)
Não confundir com Retiros:
“O deserto é mais do que lugar de
retiro, já que por sua extensão e sua aspereza possui valores próprios… Ele
traz em si o sinal da pobreza, da austeridade, da simplicidade mais absoluta; o
sinal da total impotência do homem, que descobre sua fraqueza porque não pode
subsistir no deserto e se vê obrigado a buscar seu refúgio e seu amparo em Deus
só… O deserto é tentativa de progresso desnudado, destituído de todo apoio
humano, na carência e na falta de todo sustento terreno, inclusive o
espiritual, para encontrar Deus… O que é essencial no deserto é o despojamento
total, bem como a espera paciente e silenciosa de Deus na inatividade de nossas
potências”. (Pe. Voillaume).
Orientações para se viver bem o
deserto:
“Quem deseja fazer um dia de
deserto deve fazê-lo com o espírito de imitar Jesus, que, de vez em quando, se
retirava para ‘lugares desertos’ a fim de orar.
Logo não é tanto o desejo de
repouso e solidão longe dos homens e do barulho que estes fazem, que impelia
Jesus ao deserto, porém bem mais a sede de estar face-a-face com Deus, seu Pai,
em sua função de adorador e salvador. Este desejo de solidão é a única coisa
que deve estimular-nos a buscar e a amar a solidão
O deserto põe o homem diante de
si mesmo, inerte e privado de todas as suas forças, potências e hábitos, para
confrontar-se com a presença de Deus no máximo despojamento possível. Num dia
de deserto não se encontra normalmente a presença da eucaristia e das funções
litúrgicas. Por isso será preciso esforçar-nos para buscar a presença de Deus em
nós e também na natureza que nos rodeia.
Quando partes para um deserto
dizes para ti mesmo que Deus te encher com a sua presença à medida que tua
fraqueza respeitar a solidão e perseverar na oração. Se faltarem estas
disposições fundamentais de esperança e de disponibilidade aos dons de Jesus,
podes ficar bem certo de que muitos outros espíritos mau vagarão em torno de ti
na solidão. Basta ler a Sagrada Escritura para convencer-se deste sério perigo.
Aliás entre as poucas coisas que
deves levar contigo para um dia de deserto não te esqueças da Bíblia, que
contém todo exemplo dos homens que se sentiram apaixonados pelo deserto…
Lembre-se sempre que o deserto é
um lugar de trânsito e que há sempre um retorno mais forte e mais sereno para
junto dos homens, de quem não poderás esquecer-te nem mesmo durante o deserto.
A última observação é de que um
deserto transitório reclama outro: aquele que Jesus restituiu sua alma ao Pai…
Oxalá que um dia de deserto
reavive em ti o desejo de morrer mártir por ele e com ele e… que isto aconteça
a manhã...
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