Cantos Gregorianos - Salmos

domingo, 25 de maio de 2014

Carta de São Bruno a Raul.


Ao venerável senhor Raúl, preboste de Remos, envia Bruno suas saudações, com um espírito de caridade muito puro.
Brilha em ti a fidelidade a uma antiga e inquebrantável amizade, tanto mais admirável e digna de elogios quanto mais rara é encontrá-la entre os homens. Apesar da distância e do tempo que separaram nossos corpos, jamais teu afeto se separou de teu amigo. Atesta-o a extrema amabilidade de tuas cartas em que me repetes o entranhável de tua amizade, os numerosos favores que me prestaste a mim e ao irmão Bernardo por minha causa, e outros muitos atendimentos. Meu agradecimento não está, por verdadeiro, à altura do que tu mereces, mas brota da fonte límpida do amor, em pagamento de tanta bondade.
Um viajante, bastante de fiar em outras ocasiões, saiu faz tempo daqui levando uma carta que a ti eu dirigia. Como não regressou, parece-me justo enviar a um dos nossos para que ponha ao corrente a tua caridade de minha existência. Por escrito não me seria possível explicá-lo extensamente; de viva voz, ele o fará com todo detalhe.
Saiba tua dignidade -e sem dúvida não te será indiferente- que a saúde de meu corpo é boa (oxalá o fosse também a da alma), e que o concernente aos assuntos exteriores vai tudo bem. Mas, em verdade, estou esperando com insistente oração, um gesto da divina misericórdia que sane minhas misérias interiores e preencha o meu anseio.
Estou em Calábria com outros irmãos, homens religiosos, alguns muito cultos, que montam fielmente uma guarda santa, esperando o regresso de seu Senhor para abrir-lhe as portas assim que chegue. Vivo num deserto, afastado de povoado por todas as partes. Como falar de modo adequado de seu encanto, de seu ar saudável e temperado, da vasta e agradável planície que se estende entre os morros, com seus verdes prados e seus pastos em flor? Quem se atreveria a descrever a perspectiva das colinas que se elevam suavemente por todos os lados , o retiro dos vales umbrosos onde abundam rios, ribeiros e mananciais? Sem contar as hortas de irrigação e os jardins naturais de variadas árvores.
Mas, por que deter-me nestas coisas? Outros são os prazeres do sábio, infinitamente mais agradáveis e úteis, porque divinos. No entanto, quando o rigor da disciplina regular e os exercícios espirituais fatigam o frágil espírito, este costuma encontrar bem-estar e descanso em tais deleites. Efetivamente, o arco sempre tenso, perde sua força e já não serve mais.
Quanta utilidade e gozo divinos trazem a solidão e silêncio do deserto a seus apaixonados, só o sabem aqueles que o saborearam.
Aqui os homens ardentes podem, sempre que o desejam, entrar e permanecer em seu interior; fazer germinar vigorosamente as virtudes e alimentar-se com fruição dos frutos do paraíso.
Aqui se adquire aquele olhar límpido cuja visão clara fere ao Esposo de amor, e cuja pureza permite ver a Deus.
Aqui nos urge um descanso diligente e nos ocupa uma calma atividade.
Aqui, pelo esforço do combate, concede Deus a seus atletas a esperada recompensa: a paz que o mundo ignora e o gozo no Espírito Santo.
Esta é a bela Raquel, tão formosa e preferida de Jacob, ainda que lhe desse menos filhos que Lia, mais fecunda, porém de olhos apagados. Efetivamente, os filhos da contemplação são menos numerosos que os da ação; mas José e Benjamim são preferidos por seu pai a todos os seus irmãos.
Esta é a melhor parte escolhida por Maria e que não lhe será tirada. Esta é a formosa Sunamita, única donzela eleita em todo o Israel, para estreitar em seu seio o ancião David e lhe dar calor.
E tu, meu irmão queridíssimo, oxalá a ames sobre todas as coisas, para que preso em seus abraços, ardas de amor divino! Se nascesse em tua alma o carinho por ela, cedo te enfastiaria essa sedutora e enganadora que é a glória do mundo; recusarias sem esforço as riquezas carregadas de ansiosas preocupações para o espírito, e te repugnariam os prazeres, tão nocivos ao corpo como à alma.
Tua prudência não te permite ignorar quem disse: "Quem ama o mundo e tudo o que há no mundo -isto é, o prazer da carne, os olhos insaciáveis e a ambição- não está nele o amor do Pai". E também: "Quem é amigo do mundo, converte-se em inimigo de Deus". Então, existe pior desordem, comparável manifestação de um espírito desviado e degenerado, atitude mais funesta e lamentável que levantar-se contra aquele cujo poder é irresistível ou cuja justiça se cumpre inexoravelmente, pretendendo declarar-lhe guerra? Somos talvez mais fortes do que Ele? Hoje sua paciente bondade convida-nos à penitência, mas quer isso dizer que não acabará por castigar a injúria que cometemos ao despreza-lo? Há algo mais contrário e mais oposto à razão, à justiça e à propria natureza, que amar mais a criatura que o Criador, que procurar os bens passageiros mais do que os eternos, as coisas da terra mais do que as do céu?
Que fazer então, caríssimo? Que fazer senão crer nos conselhos divinos, crer na Verdade que não pode enganar? Ela dá esta advertência a todos: "Vinde a mim todos os que andais carregados e sobrecarregados e eu vos aliviarei". E não é um ônus terrível e inútil estar atormentado por seus desejos, ver-se sem cessar vergado pelas preocupações e angústias, pelo temor e dor que engendram tais desejos? Há ônus mais preocupante do que aquele cujo peso, com a maior injustiça, precipita a alma do cume de sua sublime dignidade até o fundo do abismo? Foge, irmão meu, foge, pois, destas turvações e inquietudes e passa da tempestade deste mundo ao repouso e à segurança do porto.
Conhecido é de tua prudência o que a mesma Sabedoria nos diz: "Quem não renuncia a quanto possui, não pode ser meu discípulo ". Quão formoso, útil e agradável é freqüentar sua escola, sob a direção do Espírito Santo, para aprender a divina filosofia, única a fazer-nos verdadeiramente felizes, quem não o vê?
Para ti, pois, é da maior importância examinar tua situação com a máxima discrição e prudência. E se o amor de Deus não te atrai, se o atrativo de tais recompensas não te comove, deixa-te ao menos convencer pelo temor de um castigo inevitável.
Bem sabes que compromissos te prendem, e a quem. Poderoso e temível é aquele a quem fizeste voto de entregar-te como oferenda agradável a seus olhos: não tens direito a faltar-lhe à palavra dada, e nem sequer a ti te interessa fazê-lo, pois Ele não suporta que alguém o engane impunemente.
Lembra-te, meu amigo querido: achávamo-nos um dia os dois, junto com Fulco o Caolho, no jardinzinho contíguo à casa de Adam, onde então me hospedava. Os prazeres enganosos, as riquezas perecíveis deste mundo e as alegrias da glória sem termo, parece-me que ocuparam um momento a conversa. Então, inflamados de amor divino, prometemos e fizemos voto de abandonar sem tardança o século fugitivo, para ir em busca das realidades eternas e receber o hábito monástico. Tudo o tivéramos cumprido rapidamente se Fulco não tivesse marchado então a Roma; deixamos para executá-lo ao seu regresso. Atrasou-se, intervieram outros motivos; esfriaram-se os ânimos; o fervor se dissipou.
Que fazer então, caríssimo, senão livrar-te quanto antes de tal dívida, se não queres incorrer na cólera do Todo-poderoso e, por isso, em atrozes suplícios, como castigo dessa tão grave e prolongada falta de palavra? Que poderoso deste mundo deixaria impunemente a um de seus súditos defrauda-lo de um dom que lhe tivesse outorgado, sobretudo se o considera de valor excepcional? Portanto, presta atenção não às minhas palavras senão às do profeta, ou, melhor dito, às do Espírito Santo: "Fazei votos ao Senhor vosso Deus e cumpri-os todos os que a seu redor trazeis oferendas: Ele infunde terror, Ele deixa sem alento os príncipes, Ele infunde terror aos reis deste século". Ouves ao Senhor, ouves a teu Deus, ouves àquele que infunde terror, ouves ao que infunde terror aos reis da terra. Qual o motivo de tal insistência do Espírito Santo, senão a urgir-te que cumpras o voto que prometeste? Por que cumprir com pesar, o que não arcará nem perda nem diminuição de teus bens? Tu serás quem achará as máximas vantagens e não aquele a quem entregues o que lhe é devido.
Não te retenham, pois, as riquezas enganosas incapazes de remediar a miséria, nem o brilho do cargo de preboste que não pode exercer-se sem pôr a alma em grave perigo.
Encontras-te agora constituído administrador dos bens alheios e não seu proprietário. Se os empregas para teu uso pessoal -não te irritem minhas palavras- fazes algo tão odioso como injusto. Se o luxo e o fausto te atraem e manténs um grande modelo de vida, não te verás obrigado a suprir a escassez de bens adquiridos honradamente, encontrando o modo de tirar a uns o que ofereças a outros? E isto não é fazer o bem nem ser generoso, pois não há nada generoso se não é também justo.
Gostaria que te convencesses ainda de outra coisa. O Senhor Arcebispo põe grande confiança em teus conselhos e se apóia de bom grado neles. É fácil dar conselhos, ainda que nem todos sejam justos ou úteis, e a idéia dos serviços que lhe prestas não deve impedir-te de dar a Deus o amor que lhe deves. Esse amor, quanto mais justo é, tanto é mais útil.
Sim: há algo mais justo e mais útil, ou melhor dito, há algo tão profundamente arraigado e tão plenamente adaptado à natureza humana como amar o bem? E há outro ser, além de Deus, cuja bondade possa comparar-se à sua? Que digo: há outro bem fora de Deus só?
Por isto, ante esse bem cujo incomparável fulgor, esplendor e formosura se pressentem, a alma santa se abrasa no fogo do amor e exclama: "Com todo meu ser -exclama- tenho sede do Deus forte, do Deus vivo; quando irei, pois, ver a face de Deus?"
Oxalá, irmão, não desdenhes esta amigável recomendação! Oxalá não faças ouvidos surdos às palavras do Espírito Santo! Oxalá, caríssimo, satisfaças meu desejo e minha longa espera! Cessarão em minha alma o tormento das inquietudes, preocupações e temores que sinto por ti. Pois se te ocorresse -Deus te livre- deixar esta vida antes de cumprir teu voto, me deixarias entregue a uma contínua tristeza, sem o consolo de esperança alguma, trespassado de dor.
Portanto, quisera que te convencesses com minhas insistências: com motivo, por exemplo de uma peregrinação a São Nicolau, tem a condescendência de vir ver-me. Verás aquele que te ama com um amor sem igual. Poderemos conversar de viva voz de nossos comuns interesses. Confio no Senhor que não te pesará enfrentar os cansaços de tal viagem.
Ultrapassei os limites comuns de uma carta: não podendo ter-te a meu lado, permaneci ao menos muito tempo contigo ao falar-te.
Guarda-te de todo o mal, meu irmão, vela por tua saúde e não esqueças meu conselho. Tal é meu mais ardente desejo.
Suplico-te que me envies a vida de São Remígio, já que é impossível encontrá-la por estes contornos.

Adeus.

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