O caminho místico da contemplação
é descrito por S. João da Cruz como uma “noite escura da alma”. Até que a alma
atinja a iluminação, ou seja, a união perfeita com Deus é-lhe necessário passar
por densas trevas de escuridão sensitiva e espiritual. Tal experiência, segundo
o místico espanhol carmelita, recebe o nome de noite escura pelo fato de que a
luz divina, que refulge e alumia no fogo da contemplação, é maior e mais
perfeita do que toda e qualquer outra luz existente na alma, sejam elas de
ordem sensível ou espiritual, de tal forma que as mesmas se convertem em densas
trevas como as da noite.
Na “Noite Escura da Alma”
João da Cruz descreve três tipos de noite que precedem a experiência mística da
união com Deus. Em primeiro lugar temos a “noite dos sentidos” onde toda
satisfação e deleite com realidades desse mundo são eclipsadas na alma que ruma
ao cume da contemplação mística. A segunda noite é a “noite do espírito
na qual a alma fica sem qualquer alegria acerca das realidades espirituais afim
de que apenas a fé pura e simples lhe seja de guia rumo à união com Deus. A
terceira noite é a “alvorada” quando as coisas começam a “iluminar” contudo,
ainda não se podem comparar com a iluminação divina que a alma alcança na
contemplação.
O que S. João da Cruz na verdade
nos propõe são estágios de purificação que alma deve atravessar até que a
mesma, livre de todo apego tanto das realidade sensíveis como das do espírito,
possa descansar no seio de Abraão em estado de perfeita comunhão. Gostaria de
nessa oportunidade focar a atenção na primeira fase descrita pelo místico: a
“noite dos sentidos” que aqui denominaremos de o caminho místico do desapego
das coisas, pois, é isso o que ela exatamente é: uma experiência de desapego
das coisas materiais.
OS APETITES E O AMOR PELAS
COISAS
Para S. João da Cruz o grande
inimigo a ser vencido se chama “apetites” que nada mais são do que os impulsos
e desejos desordenados que existem dentro de nós. Segundo o mestre da
vida espiritual aqueles que se entregam ao vício dos apetitos das coisas deste
mundo trilham um caminho de imperfeição, visto que o caminho de Deus é
infinitamente perfeito. Toda a imperfeição dos apetites sensitivos está
exatamente no amor que se devota às coisas terrenas que são imperfeitas,
levando desta forma a alma que nelas coloca todo seu afeto a tornar-se
igualmente imperfeita, visto que nos igualamos ao objeto do nosso amor.
Ao passo que o desapego das mesmas faz com que foquemos nosso amor em
Deus e assim na união mística, tornamo-nos iguais a Ele, objeto de nossas “ânsias inflamadas”.
Assim, nesse desapego de todas as
coisas nossos sentidos naturais ficam em escuridão, em trevas, precisando de
uma luz que os guie. Esse constitui no primeiro passo para entrar nessa “noite
dos sentidos”.
A GLÓRIA DE CRISTO
João da Cruz também nos instrui
que para adentramos ruma a essa primeira noite necessitamos abdicar dos
prazeres que os sentidos possam nos proporcionar por amor a glória de Cristo. O
que o místico esperava é que seus leitores desenvolvessem um olhar crítico em
relação às coisas que eles faziam no dia-a-dia.
Desta forma segundo ele se você
percebe que algum tipo de conversação não vai glorificar a Cristo, não ouça. Se
a sua fala vai ser fora de hora, não fale então. E o mesmo se aplica a todos os
outros sentidos naturais. Aqui fica evidente que apenas com um grande desapego
por parte da alma é que esse tipo de renúncia torna-se possível.
A NOITE DOS SENTIDOS E A
ESPIRITUALIDADE DE HOJE
É impossível precisar a
necessidade do ensino e da visão de João da Cruz para a espiritualidade dos
dias de hoje. O contato com o conteúdo da doutrina da noite dos sentidos por si
só já é mais do que o suficiente para explicar o estado de coisas a que se
apresenta a vida dos cristãos contemporâneos.
Percebemos, não com pouca tristeza,
o quanto um grande número de cristãos têm se entregue aos apetites das coisas
terrenas. Pessoas que dizem servir a Cristo, só que no entanto, suas vidas
estão pesadas por conta dos cuidados deste mundo. Diante da fé cristã que foi
transformada numa vã filosofia materialista,
precisamos recorrer novamente à fonte mística do ensino de João da
Cruz e bebermos de suas águas profundas. Muitos se perguntam porque a
vida cristã nestes dias se encontra tão superficial, epidérmica e sem conteúdo
relevante. Jesus certa feita declarou que onde estivesse o tesouro do homem, lá
estaria também o seu coração. O homem contemporâneo vive uma espiritualidade
superficial porquanto as águas onde tem dado de beber a seu próprio coração são
igualmente rasas. A vida espiritual do
homem pós-moderno tronou-se sem viço exatamente porque igualou-se ao
objeto de seu amor: as coisas desse mundo que não tem vida em si mesmas,
porquanto são perecíveis e efêmeras. Falta profundidade porque falta fome e
sede de Deus. Conforme o místico, aquelas ditas “ânsias inflamadas” de puro
desejo ardente pela união com Cristo.
Assim as pessoas continuam
correndo atrás do vento. Seus olhos nunca se saciam de ver e nem os ouvidos de
ouvir. Buscam poder, prosperidade, fama e coisas dessa natureza. No entanto a
sentença divina permanece: “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade!”
Sem dúvidas o retorno ao ensino
sanjoanino também auxiliará na quebra da visão antropocêntrica e
egocêntrica que tem permeado a comunidade dos salvos nesses últimos tempos.
Viver a vida em, com e para Cristo buscando em tudo – seja no comer, beber,
vestir, falar etc. – glorificar Seu bendito nome. Ao invés de satisfazer-nos a
nós mesmos, como hoje se vê em peso nas igrejas, o deleite a que
se deverá procurar é o prazer do sorriso oculto de Deus na face de
Cristo Senhor. O foco já não estará mais no homem nem em suas necessidades e/ou
expectativas, mas, sobretudo na celebração dos mistérios de Deus em meio ao Seu
povo. Oh! Como precisamos atender ao chamado do humilde frei e retornarmos para
a abordagem de um evangelho simples e ao mesmo tempo profundo na sua capacidade
de nos transformar mediante nossa união com Deus.
Como precisamos nos dias de hoje
de uma fé cristã espiritual, mística. Uma espiritualidade do seguimento de Jesus
que nos torne, verdadeiramente, discípulos semelhantes a ele. Uma vida
espiritual desapegada às coisas do mundo e ao mesmo tempo com seus apetites
carnais mortificados e os desejos espirituais plenamente vivificados.
Precisamos, uma vez mais, adentramos
na noite escura onde tudo o mais, em que antes nos apegávamos, perde o seu
sentido, perde a sua “luz”, quando diante da luz de Deus que brilha
intensamente e perfeitamente, em chamas flamejantes de amorosa união mística.
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