O Rio Grande do Sul é rico da
presença da Vida Religiosa. Nele estendem-se os carismas dos religiosos/as
dedicados ao apostolado, à docência, à assistência aos mais necessitados, e
todo um grande leque de serviços na Divina Caridade, oferecidos no Corpo de
Cristo, que é a Igreja, por mais de cem Congregações Religiosas.
Nas presentes linhas, nós
queremos somente informar da nossa forma peculiar de vida de seguimento de
Cristo no silêncio da solidão junto com uns irmãos que têm o mesmo ideal, assim
como da caminhada histórica deste Mosteiro Cartusiano na serrania de Três
Mártires, perto de Ivorá. Tentaremos nestas linhas ser breves e objetivos. A
primeira palavra que podemos dizer sobre a nossa vida é que só na Fé pode ser
compreendida. A vida eremítica nasce e vive no coração mesmo da Santíssima
Trindade, e se vive através do Mistério Cristo. É a Igreja mesma, como Esposa
desse Cristo, quem sente o chamado interior para viver na intimidade com o
Esposo e, por Ele, com Ele e Nele, a Igreja, cada um de nós, remidos pelo
Sangue do Esposo, sentimos a “fome” profunda de viver no “seio do Pai”.
É o próprio Concílio, quem,
falando do posto que deve ter a vida contemplativa no conjunto de carismas do
Povo de Deus, nos diz: “Convém estabelecer por todas as partes nas igrejas
novas a vida contemplativa, porque pertence à plenitude da presença da Igreja”
(Ad Gentes, nº 18). Com ação de graças à Divina Providência, temos de
reconhecer, com humildade, que as catorze Comunidades Contemplativas do RS,
falam muito alto desta “presença plena” da Igreja no Sul do Brasil.
Dividamos agora o nosso propósito
em três pontos :
- Informar um pouco sobre a mesma
Ordem Cartusiana,
- dizer como nasceu a Cartuxa
gaúcha, e
- descrever a vida dos monges
cartuxos.
1. A Ordem Cartusiana.
Entre as famílias contemplativas,
encontra-se nossa Ordem. Esta apareceu na vida da Igreja numa época crucial.
Não era nada novo em si, pois a sua essência enxertava-se no mais antigo
monaquismo dos Pais do Deserto. Só vinha a reviver uma absoluta orientação para
Deus, uma busca do Absoluto, mediante o divino louvor, a internação silenciosa
na solidão do Deserto, uma penitência alegre e equilibrada. Esse programa de
vida dos monges e monjas cartuxos não tem outro fim, como nos dizem os nossos
Estatutos, que: "devidamente instruídos no nosso homem exterior, no homem
interior procuremos ao mesmo Deus com maior fervor, achemo-lo com mais
prontidão e o possuamos mais perfeitamente. E assim, com a ajuda do Senhor,
possamos chegar à perfeição da Caridade, fim de nossa profissão e de toda vida
monástica, e atingir depois a bem-aventurança eterna” (Estatutos Cart. 1, 4). São
Bruno é aquele “servo prudente” ao qual o escolheu Deus para ser o pai da nossa
família monástica. Com mais seis companheiros, teve a missão, sem o pretender,
"de devolver à vida contemplativa a beleza e a integridade dos seus
primeiros tempos" (Cons. Apost. Umbratilem vitæ, de Pio XI). Isto
acontecia em 1084, nas altas montanhas do Deserto da Chartreuse, nos Alpes
Franceses. Bruno, depois de fundar um outro eremitério na Calábria, faleceu no
dia 6 de outubro de 1101.
A pureza do ideal contemplativo
de Bruno, e o testemunho da sua vida são simultâneos. Embora dotado
extraordinariamente para servir à Igreja no apostolado externo como cônego Deão
da Catedral de Reims e como Reitor da nascente Universidade da dita cidade,
compreendeu que Deus lhe pedia um outro serviço : a entrega de si mesmo ao
"único necessário" aos pés do Mestre.
Uma extraordinária bondade
envolve serenamente toda a existência de Bruno até se converter em nota
característica do seu espírito, reflexo da sua alma e norma do seu proceder. A
bondade de Deus será o atributo divino que mais intensamente penetrará o seu
coração. E dessa Bondade nasce a harmonia interior, refletida na sua serenidade
exterior, no domínio de si mesmo, na paz e na tranqüilidade. E porque enamorado
de Deus, "Cativado por Deus", pode difundir o amor divino nos
corações amigos, conquistá-los para Deus, dispô-los à entrega total e
dirigi-los pelo caminho empreendido no Deserto.
É luminosa a lembrança que dele
nos deixou Santo Hugo, o bispo que o acolheu na sua Diocese: "Bruno era um
homem célebre pela sua ciência e piedade; um modelo de virtude, ponderação e
perfeita maturidade; … um homem de coração profundo" (Vita S. Hugonis, PL
153, 770).
A obra de Bruno, consolidada e
organizada estavelmente pelos "Costumes" do seu quinto sucessor,
cresceu rapidamente por toda a Europa. Uma grande veneração e fidelidade uniram
todos os cartuxos com seu pai, fundador e regra viva do carisma que lhes
deixava em herança, desejando pertencer sempre ao grupo dos homens e mulheres
que não baseiam a sua existência nas coisas vãs e passageiras deste mundo,
antes procuram, com toda a alma, Aquele que é Absoluto, e afirmam a supremacia
do homem interior e dão ao mundo secularizado um testemunho de oração viva.
2. Como nasceu a Cartuxa gaúcha
Nos anos 80, Dom Ivo Lorscheiter
(† 2007), Bispo então de Sta. Maria e Presidente da CNBB, perante o fato do
aumento das petições de jovens brasileiros ao Velho Continente que desejavam
fazer experiências cartusianas, e diante do fato de que o Pe. Prior da Cartuxa
de Évora (Portugal) contatou com ele por este motivo, depois de diversas
conversas, este, junto dos Bispos gaúchos, animaram-se a pedir à Ordem da
Cartuxa a sua presença no Brasil.
Eram anos difíceis não só para o
nosso País, mas também para a Igreja inteira de depois do Concílio. Isto fazia
que as esperanças duma fundação nas igrejas jovens não era algo muito factível
na Ordem Cartusiana contudo, os planos da Providência não eram os “prudentes”
dos homens. Sim, o Capítulo Geral da nossa Ordem de 1983, aproveitando o IXº
Centenário da Fundação da própria Ordem, acolheu a petição dos Bispos
brasileiros, e aprovou a idéia de trazer o carisma de São Bruno à América
Latina. Depois de buscar um terreno apropriado para esta Fundação em lugares
muito diferentes do Brasil (Bahia, Rio de Janeiro, Pelotas, Caxias do Sul,
etc.), foi escolhido pelos monges enviados pela Ordem um belo e solitário lugar
no nosso Estado, a uns 45 km. da Cidade de Santa Maria, na Paróquia de Ivorá,
Diocese de Santa Maria, onde a Mitra oferecera um terreno oportuno, desmembrado
da “Granja da Medianeira”, invocação mariana esta que foi escolhida para a
futura Cartuxa.
No dia da Apresentação de Nossa
Senhora, 21 de novembro de 1984, fundou-se este novo Deserto Cartusiano,
contado então com só um edifício, a “Casa de Fundação”, acrescentado aos poucos
com algumas improvisadas celas eremíticas. As obras da nova Cartuxa não
atingiriam o seu termo, praticamente, até ao redor do ano 2000. E, junto com a
construção material, a espiritual foi também crescendo aos poucos com a
contínua companhia de Dom Ivo, verdadeiro Pai Espiritual nosso, e de outros
bispos, como Dom Paulo Moretto, Bispo de Caxias do Sul, homem de oração com
alma verdadeiramente contemplativa e cartusiana.
3. A vida dos monges cartuxos
Uma radical consagração a Deus no
silêncio da solidão, constitui, o carisma vocacional do monge cartuxo, e esta é
a causa pela qual a Igreja dispensa o cartuxo, como contemplativo ao 100%, de
todos os ministérios ativos e externos (Cf. CIC, 674). Entre nós, a esse fim
vão ordenados: a Liturgia, o gênero de vida solitária e comunitária, a formação
e a espiritualidade.
Desse modo, os filhos e filhas da
Igreja favorecidos com tal vocação, desejosos de se entregar radicalmente a
Deus no Deserto, encontram na Ordem de São Bruno os meios e o ambiente
necessário para se realizarem. De momento só contamos no Brasil com um Deserto
masculino, deixamos a Deus o tempo favorável para a fundação duma Cartuxa
feminina, pois as petições vão-se acrescentando nos últimos anos.
Essa procura do rosto do Senhor
na solidão só tem sentido pelo fato de responder a seu convite no fundo da
alma; de tomar consciência duma presença gratuita de Deus nela; é um viver para
Ele, porque só Deus merece a entrega incondicional do ser humano, criado à sua
imagem e semelhança. A suprema razão da existência do cartuxo na Igreja radica
nos indeclináveis direitos de Deus, Pai e Senhor, digno de que alguns dos Seus
filhos/as vivam exclusivamente para Ele, consagrados ao Seu amor, louvor e
adoração, em imediata relação com Deus vivo e pessoal.
É a resposta de fé, esperança e
amor, com a qual o crente, o monge, se abre à revelação e à comunhão do Deus vivo,
em Jesus Cristo, no Espírito Santo.
É bom não esquecer que a Igreja
mesma é eremítica, contemplativa, no seu coração 1. Aí reside a essência de
quanto ela mesma crê, espera, ama e faz. Tudo na Igreja, Esposa de Cristo, deve
ir encaminhado à contemplação do Esposo (Cf. SC, 2).
Com essa radical entrega a Deus,
os cartuxos desejam lembrar ao mundo atual a transcendência de Deus, a cujo
amor e serviço dedicam as suas vidas; a Redenção de Cristo, que estendem a
todos os homens; o Reino futuro tornado presente no desejo e na procura; e o
valor da adoração, mais efetiva que a maior atividade apostólica, segundo o
dito de São João da Cruz. A vida cartusiana dá testemunho do Absoluto de Deus,
num mundo ameaçado pelo relativo e efêmero; da presença de Deus, numa sociedade
que põe de lado a religião; da primazia do amor, numa humanidade esquecida de
que somos irmãos. É um chamamento e um dom para o mundo, e também uma resposta
aos homens que, nos nossos dias, buscam com ânsia, mesmo fora da tradição
cristã, métodos e experiências contemplativas nem sempre autênticos.
A solidão do Deserto não isola da
communio do Corpo Místico as almas contemplativas; muito ao contrário,
coloca-as no coração da Igreja e do mundo, como dizia Sta. Teresinha.
O cartuxo não fica dispensado da
ação pastoral pelo fato de ser um solitário. Antes, encontra nisso um dever ao
nível pessoal e conventual. O ensinamento da Igreja não apresenta dúvidas:
"Os instintos de vida contemplativa têm uma importância singular na
conversão das almas com as suas orações, obras de penitência e trabalhos,
porque é Deus quem, pela oração, envia operários para a Sua messe, abre as
almas para escutarem o Evangelho e fecunda a palavra de salvação nos
corações" (Ad Gentes, 40).
Se passarmos agora a descrever o
dia a dia duma Cartuxa, temos que partir do fato de que o monge cartuxo é
eremita e cenobita ao mesmo tempo. No mosteiro cartusiano vemos uma família,
uma comunidade de solitários. São Bruno escolheu para a vida dos seus filhos as
vantagens da vida solitária e as da vida em comum.
As contadas reuniões comunitárias
fomentam o espírito de família; estreitam os laços que unem a todos “em
Cristo”; fazem participar dos frutos da caridade fraterna e nos fazem contar
sempre com o estímulo e o apoio dos irmãos na vivência da mesma vocação.
Durante a semana, os cartuxos
reúnem-se só três vezes ao dia para os Ofícios na igreja conventual: Para a
Vigília noturna de meia-noite; para Santa Missa, da parte da manhã; e para as
Vésperas, à caída da tarde. A Cartuxa, desde a época da fundação, tem um rito
litúrgico-eremítico próprio, que renovado após do Concílio, é apropriado para
esta vocação especial, no qual, "o monge, tendendo incessantemente para a
união com Deus, cumpre em si mesmo todo o significado da Liturgia" (Est.
Cart.,41, 4).
Especialmente na Vigília noturna,
de 12,00 h. até 02,15 ou 03,00h., tudo se desenvolve num ambiente de
recolhimento, silêncio e simplicidade num contato vivo com o louvor divino e a
sua Palavra.
A última reunião do dia é a tida
para as Vésperas, que terminam com o canto da Salve Rainha, súplica comunitária
à Mãe e Rainha do Mosteiro.
Aos domingos e nas solenidades,
há mais reuniões. São dias especialmente comunitários para o monge: quase todas
as horas do Ofício Divino cantam-se no coro, o almoço é no refeitório comum
(fora disso, o monge sempre come em sua cela) e uma recreação fraterna, vem
completar esse aspecto cenobítico do Dia do Senhor. Além disto, um passeio
semanal pelo campo, fora da Cartuxa, dá vida a esta convivência familiar. O
acesso e comunicação com os superiores permitem-se sempre.
Não queremos ocultar aqui que,
sem dúvida, a vida cartusiana é austera: ela é simples, pobre e sóbria, pois
voluntariamente se prescinde dos desnecessários confortos. Desde faz nove
séculos, esta vida, prudentemente organizada, considera as necessidades da
natureza e de cada pessoa. Não supõe nada de extraordinário nem de inumano,
antes se converte numa ajuda positiva, e em fonte de paz e de profunda alegria
para o monge que, na medida da sua vocação na Igreja, dá com generosidade o
100% Àquele que se tem dado antes o 100% de Si a nós.
Dentro do mesmo carisma de São
Bruno, segundo o atrativo interior de cada jovem candidato à nossa vocação, na
Cartuxa pode-se aspirar a um regime com mais tempo de vida na cela, ou menos,
segundo a graça e equilíbrio de cada um. Deste modo, uns monges têm o seu tempo
de trabalho e estudo na própria cela, enquanto que outros têm seus trabalhos em
um lugar diferente, nos serviços normais de todo Mosteiro. Os primeiros, “por
uma designação da piedade divina, estão destinados ao sagrado ministério do
altar” (Estatutos Cart. 3, 8), enquanto outros vivem especialmente o seu
sacerdócio batismal nos trabalhos manuais, “consagrando o mundo à glória do
Criador e ordenando as ocupações naturais ao serviço da vida contemplativa”
(Estatutos Cart. 11, 3).
Ainda que a distribuição do tempo
seja praticamente igual em toda a Ordem Cartusiana, colocamos aqui o horário
deste Deserto de Nª. Sª. Medianeira :
00.00 Vigília Noturna em
comunidade.
02.45 aprx. - Repouso.
06.30 Levantar. Prima. Oração (na
cela).
08.00 Missa Conventual.
09.00 Tércia. Lectio divina.
Estudo. Trabalho.
12.00 Sexta. Refeição. Tempo
livre. Estudo. Trabalho. Leitura.
14.00 Noa.
17.30 Vésperas (em comunidade).
19.30 Completas. Repouso.
23.45 Levantar (para a Vigília).
Bem está a acrescentar aqui que o
horário é para o monge, e não o monge para o horário, por isto sempre o monge
pede ter uma santa liberdade dentro dos tempos que não são consagrados à oração
na igreja conventual.
Para terminar, podemos dizer que
a presença de Maria é uma peculiaridade da Cartuxa. Toda a vida do cartuxo
decorre sob a proteção de tão BOA MÃE. Como membros do Místico Corpo de Cristo,
que é a Igreja (Col 1, 24), o cartuxo sente por Maria um amor filial,
participação e prolongamento do que Jesus teve e tem pela sua Mãe. E, além da
ternura maternal, o cartuxo encontra em Maria o modelo da sua vida
contemplativa e o seu ideal vivo.
Com efeito, a Santíssima Virgem é
o modelo da criatura dedicada e unida sempre a Deus. E, como Mãe de todos, tem
a missão de formar e de tornar o monge semelhante a Jesus. Daí o fato de ser
chamada desde há muito: "Mãe singular dos cartuxos" e de toda a
espiritualidade cartusiana se impregnar da sua presença através duma vida que
responde à mensagem que Ela deu em Fátima.
Conforme os desejos do Concílio
Vaticano II, pedimos a esta piedosa Mãe da Igreja que nos conceda a todos os
consagrados a graça de fazer mais visível a Cristo no mundo: “já seja entregue
à contemplação no monte (como é o posto do monge em seu apostolado da oração),
já seja anunciando o Reino de Deus às turbas, sanando aos doentes e feridos,
convertendo os pecadores a uma vida correta, abençoando as crianças (como o
prolongam muitos outros religioso/as nas diversas tarefas do apostolado
direto), fazendo o bem a todos, sempre obediente à vontade do Pai que o enviou”
(PC, 46).
Ó Bondade!
Notas :
É curioso a este respeito o que diz um afamado autor moderno, Dom Pierre Miquel, OSB : “Ainda que o eremitismo seja um vocação excepcional, é uma vocação comum à qual todo homem é chamado num momento concreto de sua vida, ainda se trate do momento final”. Ser Monge. Pág. 77. Ed. Monte Casino. Zamora 1992.
É curioso a este respeito o que diz um afamado autor moderno, Dom Pierre Miquel, OSB : “Ainda que o eremitismo seja um vocação excepcional, é uma vocação comum à qual todo homem é chamado num momento concreto de sua vida, ainda se trate do momento final”. Ser Monge. Pág. 77. Ed. Monte Casino. Zamora 1992.
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